Luiz Ruffato, 52 anos, escritor mineiro, autor de Eles eram muitos cavalos e tantos outros livros, concedeu entrevista a José Castello, publicada na edição eletrônica do Valor Econômico[1] em quinze de fevereiro deste ano, à meia-noite em ponto – imagino que Castello tenha entregue sua entrevista antes, e que ela tenha sido programada para ir ao ar nesse horário, “automaticamente”. A entrevista oscila entre um relato da trajetória de Ruffato e as impressões que este expõe acerca do panorama do mercado literário e do ofício do literato no Brasil atual.
Ruffato faz justiça ao tino maior do diário a que concede a entrevista – fala de comprometimento, de dinheiro, de lucro, de margens, percentuais, empregabilidade, networking. O título da matéria, Um homem comum, faz referência a esse tom natural de Ruffato ao tratar de um campo tão mistificado e romântico como a escrita, e à trajetória pessoal do autor, que atuou em áreas tão “comuns” como a de pipoqueiro, bilheteiro de cinema e quetais. Me pego pensando: será comum, isso? Um homem que foi pipoqueiro arredar pé no ofício liberalista do mercado literário, mão-de-obra valorizada em concursos, feiras, coletâneas? Um homem singular, vá lá. Comum? Pode ser, mas só do ponto de vista da marca, do logotipo.
Mas há a outra ponta da referência da matéria – um homem comum no sentido de que, enquanto escritor, Ruffato põe sob desconfiança ou mesmo rejeita a aura de mistério e romance associada ao ofício do escritor.
Lembra que tem uma vida simples, sem importância, como a de qualquer outro profissional que se dedica, com empenho e seriedade, a seu ofício. Antes de chegar à literatura, Ruffato – nascido em Cataguases, Minas, em 1961 – foi pipoqueiro, trabalhou em um armarinho e em um botequim e foi jornalista. Não vê grandes diferenças entre seus ofícios anteriores e o atual. Um homem trabalha com panelas, outro com carretéis ou garrafas de cerveja; ele, hoje, lida com palavras. São instrumentos de trabalho, como quaisquer outros (trecho da matéria de José Castello).
Exemplificando as características prosaicas do ofício do escritor, Ruffato conta de uma peculiaridade de sua escrita – prefere as manhãs, quando se sente menos carregado, e sente ao cabo de sua jornada cansaço, físico mesmo, decorrente do esforço e da tensão da artesania. Fico imaginando, cá comigo, que deve ser muito tenso escrever da forma como o faz Ruffato, que se edita e reconfigura muito seu texto; penso nisso porque, da experiência que tenho, sinto o peso da relação com o texto escrito muito mais intensamente do que o do processo de escrita enquanto fluxo (fluxo de escrita me parece uma figura de linguagem, assim como associação livre; por fluxo me refiro ao processo de confecção de novas orações, frases, parágrafos e textos). Eu, particularmente, detesto me reler, e vejo pelo estilo de Ruffato que ele deve se reler muito.
Essa diferença dos “pesos” da criação e da revisão não me parece, por sinal, aleatória. O ofício da escrita sempre me pareceu complexo, multifacetado, extenso, e sinto que é um tanto prejudicial à prática que seja tão constantemente vislumbrado como um gesto unívoco, simples, etéreo. Talvez essa simplificação favoreça o “diletantismo” e o “amadorismo” criticados por Ruffato muito mais do que a falta de comprometimento ou profissionalismo. Penso, por exemplo, na imagem que ele mesmo veicula: prefere escrever pela manhã, porque está mais “fresco”; a imagem que se insinua (não chega a se apresentar à consciência, mas fica lá no fundo, creio eu) é a do autor sentado em uma grande mesa de madeira, “escrevendo seus livros”, como um pipoqueiro faz pipoca, como…
[Imaginem um silêncio]
Aí está, peguei o que queria dizer: estava aqui imaginando exemplos de ofícios que se fazem de maneira simples, unívoca; a ideia era trazer exemplos representativos dessa “simplificação” do imaginário atrelado ao ofício da escrita a que Ruffato adere quando expõe seu “método”. Convidando o leitor a aproximar a imagem insinuada por Ruffato a outros ofícios “simples”, diria em contra-argumento que, no meu entendimento, falta uma insistência maior no caráter temporal, fragmentário e intencional do gesto da escrita, e aí eu montaria minha proposição. E o ponto, então, se mostrou por um outro caminho, que eu não divisei em princípio: simplesmente não me ocorreu um bom exemplo de um ofício unívoco, simples. Todo labor se enquadra em uma conjuntura complexa, em um enquadramento social, e o ofício de um trabalhador se engancha em outros trabalhos de outros trabalhadores, e em outras etapas de um mesmo processo, e em uma “formação” do trabalhador e da matéria trabalhada, até que se produza o que sai “das mãos do trabalhador”, no suposto “trabalho comum” a que alude o título da matéria do Valor Econômico. Mesmo o pipoqueiro que faz pipoca, que tinha me surgido como um exemplo de trabalho unívoco, trabalha de forma pouco “comum”: recorre a um imaginário, a um certo saudosismo, se engancha no cosmopolitismo e no culto da pressa, do tempo rápido, instaura em seu torno a aura de uma breve parada, o ritmo da pressa incrustado no ressentimento da pressa e na lembrança fugidia, muitas vezes somente insinuada, dos tempos-ah!-bons-tempos da infância e das saias prendadas e dos carrinhos de rolimã. O pipoqueiro, e o carrinho de pipoca, e o avental, e a panela – tecnologias, com cara de anacrônicas, sustentadas pelos encaixes das circulações em um pertencimento complexo, e o ofício do pipoqueiro é muito mais que o girar do troço-na-panela e o vender pipoca.
De qualquer maneira, pondo um pouco de lado o pipoqueiro: estava eu costurando um texto em que punha sob suspeita a defesa do escritor como “homem comum”, não pela falta de valor da imagem mas pela precariedade do procedimento: há que se reciclar a imagem associada ao ofício da escrita, mas não pela defesa da escrita como um ofício “comum” e sim pela impetração à imagem vulgar do ofício de suas características menos evidentes, mais contundentes. Há que se “desdiletantizar” a escrita, mas pela disseminação dos elementos díspares, difusos, complexos, doloridos, parciais da escrita. E no momento mesmo em que me propunha a instalação da superfície de argumentação no texto, a imagem sobre a qual eu construía o coração do texto escasseia diante de meus olhos. A rigor, numa escrita de um texto normal, eu seria levado a dar um passo atrás e rever os movimentos imediatamente anteriores, mudando a insinuação do texto de forma a lançar mão de imagens que me parecessem mais consistentes, e com isso sustentaria um texto “liso”, como a pipoca que o pipoqueiro vende aos consumidores de tudo que se vende quando se vende pipoca na rua.
Escrever cansa, e dói, salienta Ruffato, em defesa da veiculação da escrita como “profissão-como-outra-qualquer”. Mas nesse mesmo gesto ele acaba sustentando, pela apresentação monolítica da escrita como uma coisa só, da imago frouxa do escritor que conjura seus livros como um feiticeiro, saca de sua cartola os textos e demora-se o tempo que se demora para escrever uma massa de palavras qualquer. E aí, penso eu, fica faltando o essencial. Porque escrever, como outro ofício qualquer, é inserir-se em uma máquina complexa e cheia de articulações, e é conduzir um processo que se articula a outros processos. A “inspiração”, o “a coisa me veio”, é só um, um dos menores elementos da máquina-escrita.
Isso porque a ideia de que parte o escritor, aquela que um dia virá a ser a base do texto que ele escreveu, não está em formato-texto, não é uma sequência de palavras encadeadas veiculando ideias e uma argumentação. A ideia, pelo que sei e ao que me consta, é uma fagulha, um ponto; o autor precisa desdobrar um processo em que uma “vontade de escrever sobre tal coisa” ou uma “sensação de que isso daria um bom texto” vai se encadeando no processo produtivo que culmina, lá na frente, no tal do texto. Ao longo desse processo a fagulha vai sendo enfiada à força num campo definido pelo autor – a vontade de escrever sobre uma mulher desiludida de uma maneira maternal vai se encaixando numa Minas idílica, numa cidade pequena, num nome que ressoa alguma coisa que o escritor não sabe o que é, numa virada que lhe ocorreu e que parece-que-funciona, e nisso tudo, pelo menos da minha experiência, o tal escritor ainda nem sentou para escrever. Há quem recorra a anotações esparsas, há quem não o faça.
E então chega a hora que estabelece o logotipo, a imago do ofício da escrita: o escritor senta para escrever. Há alguns anos quero escrever sobre isso, e ainda não o fiz (acho que não por acaso): o escritor, que é uma pessoa, senta e se coloca como projeto produzir um texto a partir de imagens e ideia que estão mais ou menos dispersas na cabeça dele. Parece-me digno de atenção e de algum trabalho o esforço de compreender essa técnica, essa conexão em que um corpo se impõe a tarefa de verter em uma escrita e impor a lógica do texto escrito sobre uma ideia que latejava, insinuadamente. Essa violência e esse processo, isso é o que faz do escritor um “homem comum”: sujeitar-se a um processo produtivo, a encadeamentos que lhe escapam, a expectativas e imaginações que não correspondem ao ofício ele-mesmo, enquanto experiência bruta.
Acho que seria proveitoso ao aproveitamento social, ao enquadramento do ofício da escrita na circulação cotidiana a inclusão dessa dimensão precária, sofrida, marcada pela parcialidade do gesto que caracteriza tantas vezes a escrita. Isso porque faz sentido a ideia de Ruffato – não ajuda muito essa prática da escrita como diletantismo, como devoção voluntariosa: a escrita é uma máquina que alguns engancham sobre si por algum ganho de prazer que é sempre e certamente complexo e multifacetado. Há que se valorizar, sim, a dimensão “comum” da escrita como ofício, mas isso enquadrando a dimensão comum lá onde ela pega, para além dos idílios e das imagos idealizadas. Porque, sinceramente, não vejo vantagem em querer trazer realidade e cotidianidade à imago do escritor associando-o a imagens idealizadas e fora de contexto de outras práticas.
Vejo, por exemplo, entre meus colegas acadêmicos uma dependência triste em relação aos prazos e deadlines, em função (pelo que vejo) de uma idealização do processo da escrita como o desvelamento de uma verdade atemporal, como o surgimento de um suposto texto que já estaria lá, na cabeça do escritor, pronto e à espera do tempo para jorrar no papel ou na tela (como se o escritor fosse, naquele momento, o mediador da verdade que surge vinda de um mais-além misterioso). Nem quero entrar nessa seara da suposta verdade mais-além nos textos; o ponto é que, mesmo que haja uma verdade a surgir da escrita, ela surge do esforço e do tempo e da dedicação do autor, corrigindo uma passagem aqui, mudando outra ali, entregando-se a uma ideia repentina que veio através do uso de uma palavra inesperada acolá, e assim, “dançando” como puder, o escritor vai dando curso e forma ao texto que afinal as pessoas vão conhecer.
Talvez uma exemplificação ilustrativa daquilo a que me refiro como máquina da escrita ou tecnologias da escrita se apresenta na fabricação dos blockbusters ou, em geral, dos livros de fabricação em série: operários desenvolvem núcleos de tramas, operários efetuam pesquisas técnicas sobre os campos em que se desenrola a trama, operários viabilizam a continuidade do processo de fabricação da peça, operários apertam ou esticam ou engrossam a consistência do material, operários verificam a fidedignidade e integridade da peça, operários cuidam da embalagem, operários cuidam da divulgação da marca, do logotipo, da criação das intrigas que vão chamar a atenção, da instalação do clima de novidade e “algo-diferente”. O nome do autor, que pode até ser o nome de alguém, é uma entre outras características: Flower by Kenzo, Garnier Fructis by Thomas Taw, Harry Potter by J.K.Rowling.
Então, voltando aos fabricantes de escrita solitários, máquinas semelhantes, embora menos luxuosas e top-de-linha, se instalam sobre o corpo e sobre o tempo do escritor e acompanham esse processo por meio do qual ele se propõe a si a configuração de um texto. No meio acadêmico existe essa incoerência enorme que impõe a tantas pessoas interessadas em ser pesquisadores, ou professores, ou intelectuais que escrevam, e muito, como indicativo de “produtividade”. O problema é que o maquinário da escrita não engancha bem, não funciona, e a pessoa não se sente “pronta”, seja pela precariedade da ideia, pela falta de tempo, pela necessidade de ler só-mais-aquele-texto, pela sensação difusa de insegurança. E aí ficam tantos operários, às vezes constrangidos, cientes de estarem nessa fábrica mas sem o propósito de operar nada; até que soa (finalmente!, se podemos confessá-lo) o alarme, a sirene tocando, as luzes vermelhas, o pânico, a iminência – é agora, o prazo, o tempo, o limite, a produtividade, as estatísticas, rápido, vamos, vamos! E assim se conectam todas as máquinas, se instalam os processos e a escrita transcorre, aflita, afoita. E assim sai o artigo, a “comunicação”, a dissertação, a tese. E aí, inexorável, a farsa se repete?
– E aí, conseguiu entregar?
– Consegui, deu tudo certo – veio um insight, a inspiração, e saiu tudo…
Concordo com Ruffato que é importante desmistificar (ele não usa essa expressão) a escrita enquanto ofício; mas ele segue pela via de uma “banalização” do ofício do escritor profissional, afirmando que escrever profissionalmente é um trabalho como outro qualquer. A ideia me parece interessante, mas eu sugiro aqui essa outra, desdobrada em dois elementos: por um lado, a escrita é um ofício como outro qualquer, e é importante que pensemos na complexidade dos ofícios, por mais simples que pareçam, e na quantidade de sacrifício e dor que nos impomos no exercício dos comuns ofícios. Por outro, a escrita é um exercício imposto a muitos campos que não só o do escritor profissional, e seria importante atrelar ao imaginário do processo de escrita esses tantos processos profanos por meio dos quais surge aquela coisa aparentemente tão homogênea e sólida que é a peça escrita.
[1] Link para acessar a matéria na íntegra: http://www.valor.com.br/cultura/3005986/um-homem-comum