Lembro de uma época, ainda na escola – primeiro, segundo colegial – em que tentei começar a escrever um livro. Tinha tido uma ideia, parecia ótima, e eu gostava de escrever.
Se não me engano a ideia durou três páginas.
O projeto, claro, era maior, em termos de ideias da estrutura do texto eu teria muito mais coisa; mas não tinha como fazê-lo: estivera habituado a escrever, e a ver consideradas boas as coisas que escrevia, sempre subscritas a um mesmo modelo, uma mesma formatação. Há anos estivera sendo treinado para escrever, e escrevia, diligentemente, nos termos escolares. Era só nesse sentido, escolar, que escrevia bem. Dois dedinhos de parágrafo, introdução-argumento-conclusão, evite a primeira pessoa, concatenação etc.
O sonho da escrita, no entanto, sobreviveu ao fracasso do projeto do livro. Quando entrei na faculdade lembro de ter compartilhado com uma amiga uma aspiração: gostaria de um dia poder viver de pensar o que pensaria então, ser o que seria então. Nesse sentido (à forma geral de suporte da vida – nada a ver com ideias ou com a pessoa ela-mesma) meu muso na época era Rubem Alves – Rubem Alves e seus livros sobre educação-medicina-pedagogia-o tempo-as flores, Rubem Alves e sua formação polivalente, Rubem Alves e as palestras sobre a vida e a morte. Meu sonho era poder escrever sabendo que quereriam ler o que eu escrevia, pensar sabendo que havia interesse em minhas ideias.
Esse sonho ficou guardado enquanto eu vivia. Fazia minhas matérias na faculdade, fazia minhas coisas, e o sonho estava lá; lá no fundo eu guardava e cultivava essa convicção de que um dia isso seria meu, e seria do mundo, porque já estava lá, já era verdade em mim.
Passaram uns anos até que um outro grande amigo me pôs contra a parede: “se você quer tanto escrever, se tem tanta convicção que pode ser escritor, por que não escreve? Você diz que escreve bem; pois bem, o que você escreve? Nunca te vi escrevendo!”.
Lá estava eu, mais uma vez instalado em meus limites. Sonhos eu tinha, sonha-se à solta; o que eu fazia a respeito?
Pus-me a escrever? Não. Guardei comigo, lá no mesmo lugar em que guardava os sonhos, esse desafio, esse convite; essa convocação amiga foi parar no mesmo bolso em que jaziam ainda guardados o projeto da distopia do homem involuído-evoluído da Austrália, o sonho de viver à la Rubem Alves.
Do lado de fora do bolso a vida seguia. Fui dar com esses pedaços de história, com esses arremessos guardados só anos mais tarde, já no mestrado; mandava páginas e páginas de textos e o pessoal comentava: “são muitas ideias, parece que é coisa demais para o texto, ele fica empanturrado de ideias que não encontram espaço para se desenvolver”. O trabalho não estava indo, algo ia mal.
Aí me veio: vou dar espaço à escrita. Se são muitas ideias, bom, que sejam também muitos os textos.
Daí nasceu o Errâncias.
De uns tempos para cá, no entanto, o bolso voltou a ficar pequeno. Em algum momento o formato blog acabou impondo os limites para as errâncias: assim como no passado o modelo escolar de escrita havia constrito e sufocado o projeto do livro, vi-me às voltas com a perspectiva de o formato blog constranger e eventualmente sufocar minha escrita, meus personagens, meus enredos.
Suponho o seguinte: a escrita é um exercício bastante curioso, considerando o regime ou a relação entre o pensamento e a efetivação do pensamento em ato. Supõe-se, em alguma medida, que a escrita é o exercício de transpor em texto as ideias e os pensamentos que se tem, certo? Pois bem, me parece essencial e definidor do ofício da escrita o fato de que o pensamento ou a ideia tem que passar por uma espécie de canal redutor, quase um corredor polonês, no caminho rumo ao texto efetivado.
Como assim? Acredito que quando pensamos em coisas que consideramos que dariam um bom texto não estamos pensando efetivamente em um texto; mesmo quando pensamos em um texto que um dia lemos e gostamos e pensamos que estamos “lembrando” dele, acredito que a interface imaginária que sustenta esse ato de consciência é bem diferente do texto como ele se apresenta quando se trata de escrevê-lo ou lê-lo. Acredito que a relação da pessoa que não está efetivamente lendo ou escrevendo com o texto ou a escrita é permeada pelas intenções, pelas facilitações, pelos “completamentos” automáticos do ato de consciência. Quando lembramos de algo que lemos e gostamos a lembrança exclui os eventuais desconfortos de postura, os eventuais cansaços e sonos e sedes, as eventuais passagens enfadonhas; ao mesmo tempo em que essa lembrança condensa os momentos e movimentos marcantes em um gesto de lembrança que é quase um flash, o prazer “de leitura” ou “de escrita” que a lembrança evoca é despido das intempéries e imposições da nossa vivência como ela efetivamente foi.
Pois bem: uma coisa que tem me chamado muito a atenção em relação à escrita é a relação com o corpo que ela impõe. Escrever, como ofício, impõe poder usar o corpo como esse constritor do pensamento sem se deixar abalar; escrever implica submeter as ideias como elas nos ocorreram (puras, belas e completas, quase “ideias-anjo”) à tortura que permite transformá-las em um texto-só, sequência de palavras jogadas num papel ou tela; acima de tudo, me parece, escrever implica impor às ideias a transubstanciação que as lança no mundo finito, temporalizado. A efetivação da ideia de texto é a queda da ideia-de-texto como coisa ideal.
Pensei tudo isso, construí tudo isso, aprendi tudo isso errando; foram as errâncias pelo mundo da escrita que me impuseram essa relação com a fantasia do escritor etéreo, do homem que pensa e transpõe sua vida no correr de seus pensamentos.
O problema é que aos poucos o blog enquanto superfície foi apresentando seus limites. Se foi por aqui que aprendi a errar, se foi aqui que desenvolvi o projeto das errâncias pela escrita, aos poucos fui me dando conta de que aqui também haviam contornos, aqui também há limites. A relação entre o pensamento de texto e os atos de corpo que produzem um texto, através da mediação do blog, só se dão de um determinado conjunto de maneiras. De uns tempos para cá se me afigura a impressão de que o blog é uma boa academia: modelando, formatando, constrangendo o corpo por um lado, a relação do corpo com o pensamento por outro. Aos poucos e crescentemente foi se impondo o desejo de errar para além dos confins do blog, em busca de outras interfaces – novos encontros, novas relações corpo-escrita.
Não sei se vou. Se vou, não sei para onde. O que sei, e só sei precariamente, é que mais cedo ou mais tarde as periferias vão se condensando em centro, que de tempos em tempos é preciso saber reinventar as relações e redestruir as velhas revoluções. Sei que em face do tempo como ele agiu sobre mim, algumas recolocações se impõem, e os gestos de escrita que me pareciam representativos de uma errância já me parecem domésticos, dóceis e relativamente inférteis.
Sei que ao cabo da história como ela tem sido me parece mais inovador postar em termos à la “querido diário” que em termos de errâncias formais de textos literários.
Amós Oz disse numa entrevista que toma as manhãs inteiras para se dedicar à escrita; não que ele sente para escrever enquanto o sol levanta para brilhar e escreva até que a manhã termine, não. Ele sai para caminhar no deserto (vê se pode!); ele se fecha em sua sala e desliga o telefone. Ele fica lá. Ele só escreve quando percebe que as coisas que lhe ocorrem enquanto ideias de escrita surgem em seu pensamento marcadas por uma conformação estilística, uma entonação que cabem mais a seus personagens (e eventualmente ao narrador) que a si mesmo.
Acho provável que em alguma medida Amós Oz dê uma certa “enfeitada” em seu relato com tons de cotidiano e desapego.
Acho provável que, entre as fantasias de um Rubem Alves transubstanciando pensamentos em palestras e livros, um Amós Oz caminhando pelo deserto e pensando com outras vozes, entre um Beckett se impondo uma escrita em francês para traduzir um texto em uma língua mater que lhe pareça representativa de alteridade, um Hemingway escrevendo bêbado e um Paulo Coelho escrevendo com o mindinho levantado, errando aqui e ali construirei meus caminhos.
Um bom 2013 a todos nós.
Já estava sentindo saudades desses”caminhos”.
É isso mesmo, e deixar-se levar pelo que o interno te mostra e materializar de uma forma que possa refletir o masi proximo possivel do que foi pensado, sentido e concebido. Parabéns.