INTERNET E VIRTUALIDADE

Usos e desusos da internet hoje.

 A internet e uma invenção recente – data, salvo engano, de 1995. Seus poucos anos de história destoam radicalmente da importância que ela foi adquirindo na vida de tudo e de todos hoje; se há pouco mais de 15 anos não havia internet em lugar nenhum (nem a falta dela), hoje pode-se dizer com segurança que um dia sem internet seria um desastre mundial de imensas proporções. Mesmo na vida de uma só pessoa é comum perceber que um dia sem internet é uma espécie de tragédia.

Diferentemente da internet, o “virtual” é bastante antigo, bem anterior à internet. A virtualidade, como noção, se refere à presença em potência de algo que, no entanto, não está dado na configuração “atual”. Uma forma didática de se aproximar à questão é comparando o virtual ao futuro: o futuro também é uma potência a se derivar do atual; diferentemente do virtual, no entanto, o futuro não configura um campo, mas a derivação inexorável das coisas no tempo. Há muitas virtualidades instaladas como potência a partir do atual, e conforme o tempo passa apenas algumas se instalam enquanto derivações do que foi e se tornam atuais.

Qual é o ponto? Preciso resumir e frisar antes de explicar: percebam que o campo do virtual, conforme estabelecido nessa concepção meio antiquada que eu tiro meio tortamente dos livros de introdução à filosofia (ancorado basicamente em Bergson, mas “misturando” o Bergson com um certo acento espinosano) é uma expansão de possibilidades derivadas do atual, que é a ordem das coisas enquanto estas se apresentam num corte arbitrário no tempo (que a gente chama de “presente” – excluindo o fato de que o “presente” já tem enquanto atuais nossos planos e projeções e algumas possibilidades já marcadas enquanto virtualidade possível ou potência). Pois bem, o ponto é que o “mundo virtual”, conforme a internet passou a ser chamada, apresenta diferenças cruciais em relação a isso.

Não acho que faria sentido enumerar as diferenças entre a virtualidade enquanto conceito e à virtualidade conforme entendida no uso da expressão “mundo virtual” para a internet; acho que faz sentido, mas acho que tem que ser feito com cuidado e rigor e acho que configura um esforço acadêmico, que espero que alguém faça um dia. O que queria apontar aqui é que me parece que a internet acaba impondo sobre as pessoas uma espécie de relação de dívida com a virtualidade enquanto potência, na medida em que apresenta um campo estruturado de virtualidades possíveis entre a pessoa e o atual.

O que estou pensando é muito simples: hoje em dia uma pessoa precisa estar conectada, antenada, plugada, porque o mundo acontece basicamente em torno da internet. O que isso significa? Que se a pessoa não fica conectada, assistindo ao que se assiste, usando o que se usa, mexendo no que se mexe (o que “todo mundo” assiste e usa e mexe), não consegue tomar parte nos encontros efetivos, porque não há encontros efetivos em que se engajar, porque os encontros efetivos cobram essa participação no mundo virtual como condição (como dívida).

É claro que isso pode soar como o resmungo de um anacrônico, ou como o sempre repetido “sinal dos tempos” da geração presente em relação à geração seguinte: sempre temerosa da perda dos costumes, da degradação dos acordos sociais, da perda ds vínculos etc. Não estou pensando nisso e não costumo subscrever esse tipo de profecia: o que me preocupa é o “truque” embutido no uso da noção de virtualidade para se referir à circulação de informação pela internet. Mesmo quando a palavra ela-mesma não entra, como nas máximas “informação ao alcance de todos” e “democratização do acesso à informação”, a suposição de que a internet configura um campo homogêneo e igualmente disponível para que os interessados usem e se apropriem apenas do que lhes interessa me parece extremamente ideológica e perigosa. No limite, na verdade, me parece mais uma incidência da manipulação que reverte a implementação de maquinário liberalista como “ganho de liberdade”; mas eu não tenho grande apreço por essa delimitação de um campo de “orientação” política de dispositivos sociais como forma de acusação e não acho que isso explique grande coisa.

Parece-me claro que há um ganho de efetividade na circulação de informação com o advento da internet, e obviamente isso tem repercussões. Acho ruim, no entanto, que a internet e todo o aparato de virtualidade e conectividade seja julgada e apropriada com tanta ingenuidade, como se se tratasse de “ganhar tempo” para fazer outras coisas.

Entendo que essa lógica caiba em algum lugar e para algumas pessoas – muita gente se “instala” na virtualidade, produzindo dinheiro e vivendo com alguma luxúria a partir do que a virtualidade faça por elas (ou seja, sem trabalho efetivo) – mas para as pessoas comuns e suas vidas comuns não acho que passe por aí de forma alguma.

Acho que a circulação pela internet é uma forma de gastar tempo que tem se imposto, o que no limite produz um “vácuo” de vivência que é justamente o contrário do que o virtual do nome leva a crer.

Eventualmente essa forma de circulação estática – como nos passeios virtuais que as pessoas fazem por cidades, museus e afins usando o mouse e o Google Maps – lança raízes e ganha estabilidade na vida das pessoas, e esse tipo de problema a que me refiro vai virando anacrônico; eventualmente, para dizer de forma crua, as pessoas se acostumam. Aí restam os que restam, elogiando formas “melhores” porque mais antigas de viver, ou melhores porque diferentes, tanto faz. Por enquanto, no entanto, eu tenho a impressão de que essa circulação virtual ainda carrega um acento de estranhamento, mal tamponado pela ideologia, na medida em que essa diferença entre virtualidade e internet, entre circulação e navegação não se assentaram no imaginário corriqueiro. Enquanto esse nível particular de conexão entre o corpo singular da pessoa e a circulação social não ancora de vez no imaginário, resta esse desnível curioso e por vezes assombroso entre as inúmeras revoluções e primaveras que a internet vê, a expectativa que isso gera e o relativo “descaso” da ordenação corriqueira das cidades e dos dias.

Vejo de alguma forma um correlato desse desnível na clínica, como uma espécie de vácuo ou vazio na configuração da imagem corporal ou na possibilidade de simbolização de momentos de angústia ou de reordenações significativas de relações do ponto de vista “concreto” (o encontro dos corpos); mas não é disso que estou falando aqui, e isso fica para outro dia…

Não defendo de forma alguma que devamos voltar a rodar pião ou ouvir rádio-novelas, mas me entristece saber que tanta gente que acredita estar no auge da vida social, conversando com várias pessoas, jogando com outras várias, paquerando, cuidando de fazendas e aquários e crianças… está “na realidade” passando noites e dias de cueca sentado sozinho na sala de casa.

3 comentários em “INTERNET E VIRTUALIDADE

  1. Saio de casa. Um dia qualquer, indo a algum lugar, isso não importa aqui. Um emaranhado de ruas se desvela em minha frente, algumas mais rápidas, outras com mais árvores, mais curvas menos curvas, subidas cansativas. Cada uma com suas idiossincrasias também: velhinhos parados, meninas bonitas, cachorro gato papagaio. Faz algum tempo, escolhi uma rua. É uma rua inclinada, difícil de subir e de descer. Dois grandes morros. Passo por lá sempre que possível. Tudo porque, um dia, encontrei uma enorme lagartixa deitada do outro lado. Enorme mesmo, pintada, estatelada no asfalto. Muitos já a viram, com certeza.
    Faz pouco tempo, ela ganhou um companheiro. Dizem que é um argentino quem faz, não me importa. Um ratão, espalhado numa rua paralela, no lado oposto do vale. Eu ganhei outra rua. Sempre que passo por lá com minha namorada, digo: “vou te mostrar uma obra de arte!”. Sempre, repetidas vezes, não falha uma. Sempre damos risada. A lagartixa coloca um sorriso no meu rosto.
    Lembrei disso porque ela não cabe no meu computador. Ou no celular, ou no tablet. Na verdade, caber, cabe, pode-se tirar uma foto. Mas não faz sentido nenhum. A lagartixa só existe mesmo na rua, no meio do asfalto, da fumaça, do cheiro ruim. Barulho, muito barulho. Buzinas e motores, basicamente. É aí que ela existe, no meio de todas essas sensações, talvez justamente porque ela interrompa tudo isso. Parece que se cria uma bolha, um momento em que isso tudo deixa de existir, o que se prova pelo fato de que, no momento em que se a perde de vista, o barulho o cheiro a fumaça voltam repentinamente, como uma paulada na nuca. A lagartixa só existe no meio das coisas que ela faz parar de existir.
    Talvez seja isso que ainda não aprendemos sobre a virtualidade. O olhar, o toque, o som do outro são necessários. O cheiro que impregna o corpo, todas essas coisas que nos invadem, para que possamos ser arrebatados por um momento de exílio, e o retorno ao presente. Momentos que deixam de ser momentos são idiotas. O virtual só pode ser um ponto.

    1. Belo texto, Beer! Bem legal ter companhia nessas errâncias…
      Acho muito boa sua colocação, e acho que tem tudo a ver com o ponto; mas queria tentar pensar um dia como essa relação que a internet propõe com o corpo do usuário pode reverberar em uma vivência que produza encontros significativos sem esse lapso. Digo isso não porque seja um entusiasta da “internetização” das relações, mas porque acho que as coisas estão se “internetizando” rapidamente e sem o lastro devido nas experiências e conformações sujeito-coletivo… entende?
      Lembraria por exemplo, a respeito da relação desse problema com o seu texto: “com a escrita, a comunicação pôde libertar-se do tempo e da experiência passada de cada indivíduo e acumular-se em uma memória coletiva. Com a eletrônica, com os meios de conservar imagem e som, de transmiti-los no próprio instante a qualquer ponto do globo, desaparece toda restrição de tempo e espaço”. Isso quem disse foi François Jacob em 1970 – repito, 1970! Premonições à parte, essa desaparição de restrição de tempo e espaço, se por um lado faz sentido, por outro me parece impossível de se produzir a contento do ponto de vista da veiculação entre humanos da comunicação (a informação até pode rodar entre máquinas sem tempo e espaço, mas isso me parece alheio à discussão); e se essa (quase) desaparição do tempo e espaço de fato se passa nas relações entre homens, isso certamente não é sem consequências, não é?
      O lance, no fundo, é: existe alguma perspectiva de encontrarmos lagartixas (e não arremedos ou “apps” que simulem lagartixas) na internet? Se não, algo definitivamente vai mal com o andamento da coisa…
      Que acha?
      Que acham?

  2. Sugiro ver o filme Medianeiras, filme argentino, muito legal, mostra esse isolamento e por outro lado essa pseudo sensação de estar entre tantos e o sofrimento que isso gera. Parabéns pelo texto.

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