Do Majestic, a queda

Sobre Alê e sobre Fábio, guarda compartilhada na ciranda com Dayane Rodrigues, Dayane do blog Palavras Bambas: http://palavrasbambas.blogspot.com/

  O prédio. Finalmente, o prédio.

  Casinha. Água, banho, TV, comer alguma coisa.

  Tá, é isso. Tudo certo. Nada de mais.

  Vai passar.

  O prédio salta estranhamente aos seus olhos a cada passo que ele dá – de alguma forma ele se sente mais ciente de seus passos, do bizarro movimento que impele um homem à frente, um pé joga o chão pra trás, o chão se vinga e joga o homem à frente, e assim o homem segue a vida.

  Uma eterna briga contra o chão; sempre sendo jogado para a frente. Sempre em conflito com o chão.

  …

  até que o chão engula o homem sem dó nem piedade.

  até que a moça vire um desconjunto improvável espatifado no chão.

  Porra, como pode!

  ‘ Bom dia, doutor Fábio ‘, o porteiro – ainda – tenta. Sem resposta, como em todas as outras vezes.

  Esperando o elevador (maldito elevador, sempre lá no cu do mundo do ducentésimo andar) se vê de repente com raiva da mulher desconjuntada – porra, é difícil pra todo mundo! Que direito tem ela de, sofridinha da vida, resolver pular, resolver cair desmantelada no meio de todo o mundo, se colocar no caminho de todo o mundo? Como pode se dar o direito de trapacear, de jogar-se uma bomba nessa eterna briga com o chão, tirar o chão de todo o resto, de todos nós? Ela vira chiclete gigante para desespero dos garis na rua, beleza – e ele? Como ele segue?

  ‘Putz’, ele solta entre dentes, olhando para o chão; completa a frase mentalmente: ‘a Alê tem razão, eu sou um monstro…’.

  Chama o elevador mais uma, duas, três vezes, irritado de repente.

  O elevador chega assim que ele tira o dedo do botão, como se ficasse amedrontado com a raiva daquele dedo. As portas se abrem; ele já está entrando quando percebe que há uma senhora dentro do elevador. Não consegue conter a surpresa, a irritação que o tomam ao ver-se destinado àquela desconhecida, desagradável companhia, preso com uma adorável-detestável velhinha por sabe-se lá quantos segundos. A náusea, com a qual já se habituara, volta a incomodar – só falta, agora, desmaiar no elevador e ser socorrido por uma dessas velhas chatas do prédio…

  Ela deve ter vindo da garagem. Ele nem sabe até qual andar ela vai.

  Olha para a velha com o canto do olho, o rosto ainda fixamente dirigido para a porta fechada. Abaixa o olhar. Boceja.

  ‘Desculpe me intrometer, mas… o senhor está bem?’

  Ela o olha fixamente, um sorriso condescendente odiável estampado na cara enrugada.

  ‘Ótimo, senhora; estou ótimo. Só um pouco cansado’.

  O elevador pára.

  ‘ Tem certeza?’

  As portas se abrem.

  ‘Opa, é o meu’, diz ela, encaminhando-se para a porta com um detestável sorriso, saltitando passos microscópicos; ‘anda que nem gente’, ele tem tempo de pensar. Ela pára no meio do caminho, entre o elevador e o corredor.

  ‘O senhor não me parece muito bem. Deve morar sozinho, certo? Ninguém teria deixado o senhor sair assim, de moletom e havaianas…’ (ela ri baixinho, a cabeça balançando). ‘Sabe, eu posso fazer um chá para o senhor, acho que faria bem; ou quem sabe umas torradas…’

  ‘Eu estou bem, senhora, agradeço’.

  ‘ Tem certeza? Eu lembro de tê-lo encontrado no saguão algumas vezes… o senhor trabalhava, não? E estava sempre com uma menina bonita, era sua namorada?’

  Alguma coisa explodiu dentro dele, alguma coisa que irradiou ar (é estranho, mas parece mesmo muito ar, um despropósito de ar) por toda parte, com toda força, e esse ar precisa sair, ele precisa queimar, precisa fazer alguma coisa; inflou-se em milésimos de segundos, mas pôde percebê-lo nitidamente.

  ‘Estou ótimo, porra! Estou incrível! Incrível’

  Ele força a passagem pelo pouco espaço entre a velha e o limite direito da porta do elevador; como ele obviamente não caberia lá seu ombro pega a velha em cheio, ela roda como uma catraca maltratada – será que ela vai cair? Abre a porta de emergência, vai subindo as escadarias aos saltos, três degraus por vez.

  E aquele ar forçando, forçando, precisando sair. Ele pulava, empurrava violentamente as escadarias aos seus pés, fazendo agilmente as curvas entre os lances, andar após andar; a escadaria girava sem parar, os degraus se seguiam infinitos, indistintos, incoerentes; podia sentir, dentro dele, os órgãos saltando, inflados, esparsos, podia sentir o chão que apanhava dele, sempre batendo de volta, sempre o jogando para cima;

aquilo era infinito;

aquilo era tudo.

  Em algum momento seu pé prende em alguma coisa, fica pelo caminho; algum degrau deve tê-lo alcançado, puxando-o ao chão. ‘Não, isso não é uma dança’, o chão afirma. ‘Eu empurro os homens; eu controlo os homens, e depois eu engulo os homens, os homens presos a mim’.

  Ele bate contra a escadaria com a lateral inteira do corpo, uma quina na altura da canela, outra logo abaixo do quadril, outra bem nas costelas, outra ainda no ombro.

  A dor, aguda, explode com um delay de alguns milésimos de segundos; nesse intervalo ele só sente uma profunda consciência de seu próprio corpo, de sua precariedade e de sua ridícula submissão ao trágico do mundo em si, da dura pedra da escadaria, do duro chão. Os homens não trocam força com o chão em sua caminhada – eles se sustentam, desesperados, dando pequenos pulos como quem ganha mais uma fagulha de esperança; um emprego, um passo, uma namorada, um dia, um passo, um pulo, um emprego, algum dinheiro, um passo… o chão, indiferente, a tudo olha, a tudo come. Peixes saltitando sobre o óleo.

  Alguns milésimos de segundos; e é lindo.

  Mas aí a dor explode.

  ‘Aquela moça’, ele lembra, ‘e seu grande salto, e sua grande queda’.

  O degrau que atingiu as costelas foi o mais maldoso; ele imagina se poderá levantar, se poderá andar; imagina se será hospitalizado, e deseja que seja. Deseja que seja hospitalizado, e que seja algo grave, porque aí talvez a Alê o visite, e perceba o quanto ele precisa dela – e veja o quanto ela precisa que ele precise dela. E eles não diriam nada. E o chão pararia de tremer. E o mundo pararia de rodar. E ficaria tudo bem.

Um comentário em “Do Majestic, a queda

  1. A voz do personagem Fábio é tão real, nessa volta da ciranda, que os sentimentos da Alê se transformam, e fico buscando uma volta por cima, ou mais nenhuma volta para a vida desfeita dos dois.
    Vamos ver até onde Alê consegue ir.
    Alê percorre, neste momento, a Araújo de Medeiros até o Paternon…

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