Terceira margem: o cuidado entre a instituição de ensino e a instituição atendida

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  Este texto é a base de uma fala apresentada em um evento em 2008. Os cinco autores escreveram este texto tendo como objetivo a comunicação – e talvez, com isso, a elaboração – de uma experiência de estágio bastante difícil.

Resulta de um processo de narrativa coletivo.Os cinco participantes deste processo estiveram envolvidos, no primeiro semestre deste ano, em um trabalho de atendimento psicológico em plantão dirigido aos adolescentes e funcionários de uma Unidade da Fundação CASA (havia outros estagiários, que não puderam ou optaram por não participar do processo de elaboração da narrativa). A história deste trabalho, no entanto, vai mais além.

[Aqui lemos um trecho de Benjamin sobre a narrativa; perdi a referência exata…]

A narrativa que compusemos cumpria, na verdade, uma dupla função: por um lado – e essa era a principal motivação – era uma tentativa de elaborar e narrar uma experiência por que passamos que foi, enquanto excesso, traumática. Pode parecer cru, mas é exatamente isso: nossa experiência de estágio nos marcou de tal forma que nos percebemos, todos nós, traumatizados pelo que aconteceu. Por outro lado, queríamos, apresentando a narrativa em espaços de discussão como esse, compartilhar publicamente a experiência que tivemos e as questões surgidas daí:

“O texto é até certo ponto a certificação por escrito de algo presentificado e vivido, uma espécie de testemunho único, uma vez que os trabalhos de campo podem, simplesmente ser replicados. Mas é, ainda, o próprio trabalho de pensamento, muito mais do que o relatório de dados e conclusões já condicionados em algum lugar da mente.” (Schimidt, M.L.S., “Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas”, In: Psicologia USP, 2006, 17(2), 11-41)

Pusemo-nos a ler os diários de campo, os registros individuais que fazíamos a cada dia de atividade e os últimos relatos, escritos após o último dia em que nos encontramos ainda como grupo de estagiários. Reunidos em grupo, refletindo sobre a dificuldade de compor os textos a que havíamos nos proposto, percebemos que talvez existisse uma dimensão de nossa experiência que não podia ser dita.

Dizem que Wittgenstein, certa vez, teceu uma crítica a Heidegger, dizendo: “Não vejo sentido em uma obra dedicada à expressão de algo fundado na indizibilidade”. Não sabemos se essa história é verdadeira; só sabemos que, se o é, não concordamos com Wittgenstein. Inegável que a idéia de dizer o que quer que seja sobre o indizível soa estranha. No entanto, há um aspecto simples da linguagem a partir do qual esta empreitada parece adquirir pleno sentido: nem sempre, quando se diz algo, procura-se simplesmente a expressão, definição ou esgotamento do sentido daquilo sobre o que se diz. No fim das contas, quem sabe, a idéia nem seja dizer o indizível: o que acontece é que há algo sobre a experiência-para-além-das-palavras que traz a nós, habitantes da linguagem, um quê de sublime.

Recolhendo o que vivemos a partir dos diários de campo escritos durante o trabalho, encontramos: desconforto, clima “pop”, medo de não ter medo, dúvidas (atendimento psicológico ou psicologia institucional ,  supervisão de campo (?!) ou atendimento), gente normal, gente da USP, gente burguesa, medo, postura, constrangimento, incômodo, entretenimento, cansaço, tempo que não passa, esforço de estar lá, esforço de se abrir, de ouvir, ficar à vontade, se localizar lá dentro, insistência, proteção dada pela camiseta comprida e/ou colorida, intimidade, distanciamento, assustar-se, atravessamento de questões (dia ruim, carro quebrado, etc), lugares demarcados lá dentro, testes, desrespeito, não saber onde ficar ou o que fazer, postura confrontativa, acolhimento, ficar no fundo do poço junto, ajudar a ver outras coisas, necessidade de contorno, nós e eles, mundão e “o mesmo pedaço de céu”, preguiça, diferença entre consultório e pátio, falar sobre o sofrimento, estranhamento,  irritação, distanciamento, raiva, necessidade de apoio, crise, se proteger, …  – amálgama da experiência com o desconhecido.

Como isso pôde acontecer? Pois, se éramos nós os estagiários de psicologia, se éramos nós que atendíamos, a idéia de que nós tenhamos saído traumatizados parece estranha, não? Bom, independente das opiniões pessoais anteriores ao que passamos, nós percebemos claramente que não é bem assim, que o trabalho em psicologia é, sim, uma experiência marcante, podendo configurar um trauma; mas percebemos, e essa é a grande questão, que o estágio em psicologia, especificamente, configura um trabalho particularmente difícil e frágil.

Primeiramente, uma palavra sobre a implicação do terapeuta (sugiro que se use ‘terapeuta’ para o trabalho psicológico do estagiário em psicologia, usando o termo ‘estagiário em psicologia’ para se referir ao lugar ocupado por este). Lembro-me agora da obra “O terapeuta” do Magritte, em função de um detalhe específico: o terapeuta retratado não tem corpo nem cabeça, sendo, em si, o portador da liberdade… e só. Esse “destilamento” do terapeuta, embora represente sutilmente a função do terapeuta, acaba deixando de lado a pessoa do terapeuta; acredito, no entanto, que essa separação não possa ser feita. É só enquanto pessoa que o terapeuta pode de fato acolher e compartilhar o ser daquele que o procura, mesmo que, enquanto pessoa, sua principal função seja recolher para si o que de si ressoa no que traz aquele outro. A frase é complicada, mas a idéia é simples: o terapeuta só é terapeuta enquanto pessoa, mas ele só assume seu papel terapêutico no ato de se esforçar para evitar-se na escuta, para estar, sem reservas, com o outro. Há vezes, por certo, em que o estado daquele outro conclama a pessoa do terapeuta inegavelmente, como se a própria humanidade deles estivesse em questão ali; a idéia, no entanto, continua a mesma: não há um esforço por recolher-se nem nada do estilo, mas há necessidade de abrir mão de seus portos e de suas seguranças para que se possa mergulhar com o outro na alteridade de si mesmos (“éramos desconhecidos indo ver outros desconhecidos”…).

“a verdadeira passagem ocorre no meio (…) Eis o nadador sozinho. Deve atravessar, para aprender a solidão. Esta se reconhece no desvanecimento das referências” (Serres).

O nosso lugar de estagiário em psicologia era, portanto, marca no terapeuta que éramos, que precisa de cuidado, que não é profissional – embora não o deixe de ser quando assim o convocam na instituição em que atende.

Ser-não-sendo exige cuidado porque é passagem, porque é aprendizagem. Voltamos ao Magritte, outra característica de seu terapeuta: o terapeuta só tem a ele, pois é ele que se funda, ele que se faz terapeuta. Estar no lugar de estagiário em psicologia é aprender o ser-terapeuta, que se dá sozinho, na prática, não se ensina. Porém, com a segurança de saber que há alguém (mestres) que nos autoriza a partir (Serres) e descobrir o nosso ser-terapeuta. Posição difícil, esta: estar sendo cuidado para poder estar, de uma forma que não se ensina, ocupando um lugar de cuidado; estar sendo conduzido em uma prática em que não se conduz. Todo estagiário em psicologia passa por isso, nós não somos exceção nessas características e nestas dificuldades; por outro lado, foi só a partir daquilo que passamos – e que esperamos que não aconteça muito nem que seja a regra – que pudemos nos engajar em um questionamento, um espanto tal que nos levou a ver isso. Só uma crise abre a chance para a ressignificação, dado que o significado, embora estático, arbitrário e simplificador, tranquiliza e conforta.

Com a interrupção brusca de nosso estágio, devido a um impedimento imposto ao laboratório a que estávamos vinculados de continuar a exercer sua atividades de pesquisa e extensão, vimos que estávamos, na verdade, sem alguém que estivesse de fato nos autorizando a partir para onde partíamos.

Estávamos tão imersos, com tanto ímpeto de realizar esse estágio, que nem nos demos conta de que estávamos sós no meio do oceano, sem margens, sem chão, só céu.

Esse momento institucional deflagrou justamente esse descuido. A ferida que sentimos não foi apenas porque a instituição nos “proibiu” de continuar nosso trabalho ou, até mesmo, por não nos ter permitido encerrar os atendimentos, mas porque não foi continente, não nos ouviu, não nos olhou.

Ficamos com a sensação de que a “causa” de nossa ferida é, ou esbarra, na surpresa tanto com o abandono inesperado, quanto com a denúncia de que já não nos cuidavam há algum tempo, que nem sabemos quanto…

Inconformados com o que se passou, não poucas vezes nos perguntamos: mas afinal, quem errou? O que aconteceu? De onde veio tudo isso? Nosso esforço de rememorar juntos permitiu que compreendêssemos que, na verdade, não houve erro nem houve culpado – e se houve, não fomos nem seremos nós a descobri-lo. É fato que acabamos nos dando conta de coisas que se passaram que foram muito ruins, coisas muito graves que estavam acontecendo e das quais não nos dávamos conta, problemas sobre os quais não nos debruçávamos; percebemos que muitas coisas não aconteceram da forma como poderiam envolvendo os supervisores, coordenadores, a instituição de ensino, a instituição atendida, o nosso grupo, cada um de nós. Percebemos, enfim, que era justamente disso que se tratava: muitas coisas aconteceram, não da forma como poderiam, mas da forma como aconteceram.

Nos remete a uma discussão que nos tomou em alguns momentos da supervisão: afinal de contas, existe um certo e um errado? Pode-se, afinal, errar? Pois bem, descobrimos que sim; mais que isso, descobrimos que toda a nossa vida, no fim das contas, é isso: uma errância. Errando e nos demorando nas nossas errâncias, demo-nos conta da fragilidade e da insustentabilidade do lugar que nós, aprendizes de feiticeiros, carne e osso, ocupamos. Ser-não-sendo, não-lugar… pode ser; no entanto, devemos lembrar, sempre, que o não-ser de um ser dói, estar em um não-lugar é muito difícil; ser, em si, em seu corpo, um terapeuta, é arte de muita errância, muito vagar. Devemos lembrar que somos provisórios e corruptíveis, mais do que seria confortável, menos do que poderíamos, incomparavelmente incompatíveis com o que se espera de nós nesse espaço entre instituições, serviços, lugares e atribuições.

O cuidado da instituição-escola, sempre questionado, cumpre o papel do apoio que apóia só em nós sabermos que está presente, da bóia que, despontando em meio ao nada, renova as forças de quem a vê; às vezes, agarramo-nos a este cuidado, a esta bóia, tão provisoriamente quanto, como sabemos, a vida impõe; não vejo neste recurso uma fraqueza, mas a marca maior do percurso de uma aprendizagem que só se configura no corpo – corpo do estagiário, corpo do terapeuta.

“Sofri o grave frio dos medos, adoeci. (…) Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”

(Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”) (http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp)

W, Carol, Helena, Raquel, Mari, 2008

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