Talvez seja simples.
Talvez seja assim.
Talvez toda essa história d’a soma dos medos, a soma dos atos etc. não passa de baboseira e o homem é o que é, um punhado de acasos, uma esquina de mundo sem número, um conjunto de impertinências.
E a soma dos erros e dos medos não significa absolutamente nada. Nasce-se, cresce-se, caga-se, casa-se, come-se vive-se malha-se beija-se torna-se desfaz-se morre… e minhocas e outros bichos que talvez nem nome tenham comem toda a carne e ossos que um dia foi gente e é isso. Lembranças e despojos etc. são resíduos de outras gentes, outras esquinas.
“A vida é erro”, “a vida é errância”, diz o francês; bonitinho: porque erro é desvio, incorreção, falha e, ao mesmo tempo, erro é errância, perambulação, caminho sem destino – a menos que o destino seja de um ângulo medonhamente obtuso, do tipo “infinito” ou “nada” ou “beyond”… mas dá no mesmo.
Agora, pro francês isso faz sentido porque a palavra “erro” comporta a ambiguidade e torna poética uma colocação que no mais teria aceitação quase nula, mesmo num meio anos-sessenta. E isso faz sentido pra mim porque quem quer que tenha sido que se deu ao trabalho de traduzir fez um trabalho passável e eu, lendo o francês, estranho, levanto o olhar, penso um pouco e balbucio: “é… hm…”.
Que sentido faz isso? Que desvario é esse, em que uma colocação qualquer se faz sentir e se faz portadora de sentido? O que isso faz funcionar em mim? A frase se marca em mim como se eu fosse gado, portando consigo, indelével, um estreitamento de possíveis, uma canalização de existência – e eu, monte de carne e osso, me faço portador de marcas do português, do berço de bronze/platão que me pariu, metido a intelectualóide, acreditando que pensar “a vida é errância” comporta em si algo de subversivo ou renovador: e enquanto me empolo pra balbuciar a francesa marca no meu corpo, a máquina de moer carne que é esse mundo que os homens se fizeram para si como castigo para algo que não sei bem o que (mas sou penalizado da mesma forma) vai passando. Que se seja indigesto perante a máquina de moer carne – eis o que resta de errância.
Ah, francês! Morto como está você deve estar bem feliz, sendo citado a torto e direito, sonho proibido de tantos gênios-pra-si-mesmos nessa Terra do Nunca que é a crítica, com C maiúsculo…
E o inglês? Disse ele: “morrer sem ter filhos é um tormento, pois não tive quem me matasse em sua fantasia, não pude sobreviver a esse assassínio e, assim, privei-me da única sensação de continuidade”.
Chegou a pizza; dá-me já saudade o Camus. Por sorte tenho aquela dor de dente que tanto arde quando me ponho a ranger! Aparentemente, mais uma noite de intelectualidade cáustica, ressentimento barato, e amanhã – amanhã!… le métro, le boulot, le dodo: impertinências.
…
Televisão; os canais passam com os cliques excessivos (mas necessários) no controle remoto. Remoto… algo passa, algo se passa de mim, se esvai – errâncias. Paulatinamente os canais demoram-se mais a passar. As ênfases e urgências e emergências parecem de repente convencer algo em mim de sua novidade: “nossa, quanta gente morreu”, “putz, que bunda”, “putz, que babaca”. Aparentemente um senhor prendeu uma donzela em uma torre particular – concreto, cortinas, caixas de ovos e a Rapunzel estava desprovida de janelas por onde passar seus longos cachos. Doze anos, sem esperanças, sem dias e noites, sem privacidade, sem tempo sem chance sem dignidade sem passagemsemmudançasemtempotragédiatragédiatragédiatrag
(BRANCO)
Atrasado. De novo.