All the things you would do gladly, oh without enthusiasm, but gladly, all the things there seems to be no reason for your not doing, and that you do not do! Can it be we are not free? (BECKETT, Molloy)
Escrevi um texto fechado e o lerei aqui – talvez porque tenha medo; talvez porque não queira ficar louco; talvez porque toda essa cena acadêmica não me convença e eu, sem um texto, me sentisse compelido a conversar ou ficar em silêncio ao invés de discursar. Seja como for, apresento um texto fechado porque ele me defende de mim mesmo e é mais doméstico e previsível do que outras coisas que eu eventualmente viesse a fazer. Não amo minha imagem de mim o suficiente para poder prescindir de um script.
Umberto Eco, em um texto seu, distingue textos acadêmicos de textos de literatura, não por questões formais ou estilísticas (que ele considera, assim, como eu, insuficientes e insatisfatórias), mas por uma questão de objetivo: diz ele que textos acadêmicos apresentam uma série desordenada de experiências, submete-as a uma organização formal e propõe uma forma de leitura organizada; os textos de literatura partem, como os primeiros, de uma ordenação de experiências aleatórias, sendo a única diferença que a literatura prescinde de uma forma de interpretação sugerida. Eu espero ter feito, pensando por aí, um texto de literatura. Discordo de Eco num ponto “pequeno”: a forma de interpretação, em literatura, é sub-reptícia, mas existe; quero fazer um texto que subverte, um texto que desmonta idéias de dentro, e não que debate com elas de igual para igual.
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Uma primeira frase e já se rompem as angústias abertas do impossível; sento, pego um papel, começo a ler e a ordem parece instaurada, a subserviência aos mesmos – mesmos costumes, mesmos rituais, as figuras da rotina que nos põe em contato com o engano da adesão cega. E a errância já não parece mais possível.
Foucault profere seu discurso inaugural no Collége de France:
“Gostaria de ter atrás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo, duplicando de antemão o que vou dizer) uma voz que dissesse: “É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até que elas me encontrem, até que me digam – estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez já me tenham dito, talvez me tenham levado ao limiar de minha história, diante da porta que se abre sobre minha história, eu me surpreenderia se ela abrisse”.
Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter de começar, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de considerar do exterior o que poderia ter de singular, de terrível, talvez de maléfico”.
O duplo de Foucault, se fosse dócil, o anteciparia, segundo seu desejo; antecipando-o, no entanto, é Foucault quem assume o lugar de duplo, certo? Seu duplo estaria à sua frente, marchando em seu lugar, e Foucault seria reduzido a sombra, a reiteração de uma novidade que nada porta de novo.
Borges relata, no Livro dos seres imaginários, como os povos de Cantão compreendiam o que denominou de “seres dos espelhos”: “naquele tempo o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não eram, como hoje, incomunicantes” – passava-se daqui para lá do espelho, os seres do lado de lá do espelho convivam com os homens e não havia mal nisso.
Os seres dos espelhos tentaram dominar o mundo dos homens; houve uma terrível guerra e o grande Imperador Amarelo repeliu-os, “encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Um dia, contudo, eles se livrarão dessa letargia mágica: no fundo do espelho perceberemos uma linha muito tênue, e a cor dessa linha será uma cor que não se parece com nenhuma outra. Gradualmente diferirão de nós, gradualmente deixarão de imitar-nos”.
E eu, disposto a falar sobre o duplo e o novo, a contestação e a renovação, pego-me citando despudoradamente, a torto e a direito, numa página que, de mão própria, tem, quando muito, cinco linhas.
O doppelgänger, proposta inicial deste trabalho, é uma das faces de um fenômeno amplo e heterogêneo que aparece em mitologias as mais diversas: o fenômeno do duplo. O duplo é compreendido de formas as mais diversas: como encontro com o divino, presságio da morte, como presentificação corpórea da consciência; presságio de uma inovação. Lacan fala do espelho e do duplo; para a cientologia cerebral, o fenômeno doppelgänger é derivado de um mau funcionamento da junção temporo-parietal.
O duplo apavora o homem; e ao mesmo tempo (seu duplo) o duplo aprisiona o homem. O medo do encontro com o si-mesmo é uma figuração do engodo em que o si-mesmo dispõe de uma casca que o faz único no mundo; o si-mesmo duplicado confronta o indivíduo a perceber-se, não só divíduo, como diluído em uma cena que em muito lhe transcende, da qual é partícipe ínfimo. Molloy, a bactéria humana de Beckett, deita-se na grama e se esquece, não só do tempo e de seu nome, como de ser – “e então eu não era mais aquela jarra selada à qual devia minha existência tão bem preservada, mas uma parede cedeu e eu enchi de raízes e galhos podados, por exemplo, paus há muito mortos e prontos a serem queimados”.
É obra do Imperador Amarelo que nos vejamos – somente a nós mesmos – do lado de lá do espelho; é assim que nos vemos unos e indivisos, filhos de nosso tempo, resultado da progressão histórica que culmina em nós, mestres de nosso futuro, capazes de nos reconhecer no tempo e de reconhecer as mudanças que o tempo inflige à nossa volta. Talvez seja obra do Imperador Amarelo, talvez seja obra do tempo que tenhamos esquecido absolutamente que esse reconhecimento e essa duplicação de nós-mesmos seja obra de um teatro, uma submissão forçada e mal-engolida dos seres do espelho. Mais que tudo, surpreende que esqueçamos que esse artifício funciona como solução provisória (e precária) à grande guerra, aos motores da morte que, como lembra Borges e como bem diz Álvaro de Campos, seguem “pondo mofo nas coisas e cabelos brancos nos homens”: um dia o duplo se apresenta em sua alteridade, surge uma linha tênue no fundo do espelho, e estamos entregues à própria sorte.
O duplo é o mesmo, surgido fora-de-si como ruptura estranha (sinistra) da contingência e precariedade da jarra que nos separa do mundo; o duplo é o oposto, nosso contrário ponto-a-ponto, face invertida que não pode senão demonstrar a fragilidade dos vínculos de identidade no tempo – essa é a lição que mais ressalto de todas essas faces do duplo apresentadas pela mitologia: o oposto é só mais uma face do duplo. A identidade e a antinomia pura são faces do mesmo fenômeno.
Minha idéia, com essa exposição, é levantar uma superfície de trabalho para pensarmos algumas coisas que me chamam atenção no campo de práticas da saúde mental pública, em nossa sociedade:
a. a contraposição de uma utopia a um modelo errado que é demonizado como forma de proposição política;
b. a perspectiva do trabalho interdisciplinar e um problema que se lhe opõe: as corporações sindicais e sua militância específica;
c. a oposição axiomática entre loucura e normalidade como paradigma de nossa sociedade e o papel estruturador que isso tem na condução do cotidiano, ou seja: o papel eminentemente subversivo de um trabalho realmente focado no combate à loucura como categoria social;
d. a construção de identidades de luta como forma de posicionamento político e a premência da desmobilização de categorias estanques no processo de mobilização social;
e. a atribuição de um papel de microcosmo pleno no cérebro, mais ou menos como um boneco de vodu sobre o qual se extirpam comportamentos indesejados;
f. o papel da linguagem como morada dos preconceitos e das imagens identitárias por meio das quais a exclusão permanece e prevalece.
Arremesso os elementos assim, sem um trabalho de elaboração maior, porque pensei em aproveitar o tempo de que disponho para propor o princípio que me norteou, mais do que as posições que eventualmente acabasse por defender ou acreditar: acho, no mínimo, coerente. Minha expectativa, com essa apresentação é que tenha podido favorecer pensamentos novos, que não sejam da ordem do “eu concordo/ discordo”, “é exatamente/ o oposto do que pensava” ou “é ótimo/ péssimo”. Quero, na melhor das hipóteses, que essa fala seja “uma linha muito tênue, uma cor que não se parece com nenhuma outra”, no fundo dos espelhos em meio aos quais tocamos nossas vidas. O que a gente vai fazer com isso depende só da gente.
Obrigado.
W, 2010