Caixa 2

Por vezes me vem essa fantasia, portando consigo a angústia que ela veste: o mercado abre, o caixa atende a infindável procissão de velhinhos e outros clientes preferenciais, o mercado fecha e eu estou lá, os pãezinhos na mão, aguardando atendimento.
Ou: faço meu cadastro na recepção do pronto socorro e sentamos na sala de espera eu, minha cabeça a explodir e a ficha amarela que me foi dada como reconhecimento de minha média urgência. Assistimos, nós três, à procissão de baleados, acidentados, parturientes, todos gritando e cercados de gente urgente a gritar aos arredores ao deus-e/ou-médico que acudam. Minha cabeça se revolta, entra em desacordo com o amarelo da ficha, brada por um vermelho que nos respeite e dignifique, mas ninguém, deus-nem/ou-médico, acode. Passa uma criança com o braço fraturado, a mãe atingindo a tudo e a todos com sua bolsa e seu desespero, e ao sabor de uma bolsada minha cabeça explode e tinge de vermelho a ficha até então amarela – vitória amarga para uma cabeça que fantasia demais.
Espero que entenda que, com todo o pouco romance possível, nessa charada seríamos, eu e você, o saco de pãezinhos, a dor de cabeça. Seríamos a singela atenção que mereceríamos, atenção que nos foi tolhida pela eterna urgência que pinta de cinza os dias, dias que no fim das contas são os únicos que temos.
Espero que entenda que me faz falta. “Fazes-me falta”, como diz a Pedrosa.
Ainda não li o livro dela, acredita? Sigo habitado pelo título, pela capa, por essa estética de contorno, só uma moldura a acolher as imaginações com que a povôo, faminto.
Mas, enfim: fazes-me falta. Queria que pudéssemos romper por um segundo a infindável procissão de mui justificadas urgências, queria que pudéssemos dizer “mas fodam-se”, e que pudessem entender toda a poesia que subjaz e perdoa, carícia que é, a impolidez de nossa urgência não sancionada.
Dizem que a calmaria um dia chega, mas esse dia, muito específico, merece sempre o nome de batismo de “tarde demais” – e eu queria que não fosse assim.
Quero.
Quero que não seja assim.
Quero que não seja.
Quero que não.
Só por um momento, sem segundos ou minutos ou horas ou dias. Quero que estejamos juntos, nesse estranho nosso lugar onde o tempo passa para todos os lugares ao mesmo tempo, lugar onde estamos em uma ínfima praia banhada por oceanos os mais vários.
Quero que possamos não estar só de passagem uns pelos outros, que você possa, só enquanto dure, que você possa se perder em mim, que não sei quem sou, que possamos sumir.
Só enquanto dure.
Você consegue?
Conseguiu?
Eu dificilmente consigo. Agora, por exemplo, vejo já os velhinhos a me fitar irritados, metralhando com seus olhares esbranquiçados o despeito por eu ter me esquecido por um átimo, eternamente imperdoável, da urgência que nos emoldura as vidas.
– Caixa 2, por favor!

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