Resenha de “Outubro”, por China Mieville

Título do livro: Outubro: história da Revolução Russa

autor: China Miéville

editora: Boitempo

título original: October: The Story of The Russian Revolution (Verso Books)

352 páginas

ano de publicação: 2017

Endereço para compra no site da editora: http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Titulos/visualizar/outubro

China Mieville é um autor prolífico; é verdade que “Outubro” é apenas o terceiro trabalho seu a ser publicado no Brasil, seguindo as ficções “A cidade e a cidade” e “Estação Perdido” mas, se dermos uma olhada em sua produção total já publicada em sua Inglaterra natal, veremos que os três títulos fazem companhia a outras tantas ficções e não-ficções, além de diversos ensaios e mesmo publicações em um blog – obra que, espera-se, ganhe com o tempo o solo brasileiro (provavelmente através da Boitempo que tem publicado o autor por aqui).

Outubro é fruto de oportunidade – não só da efeméride dos 100 anos da Revolução (Outubro é, no caso, Outubro de 1917, data da Revolução Soviética na Rússia, e é da Revolução que o livro trata), mas também da ligação de Mieville com a New Left, movimento de renovação da esquerda mundial, e através dela sua ligação com a poderosa editora Verso Books, editora da New Left, que publicou o livro em sua encadernação original inglesa.

Mas a oportunidade (editorial, comercial) só faz aumentar a alegria em reencontrar a verve crítica, ácida e contundente de Mieville nesse relato, generoso em sua pesquisa de base, preciso em seu estabelecimento cronológico e lógico, indócil às escolas e clubes que disputam privilégio na narrativa em busca dos espólios do passado revolucionário. Aparentemente indiferente aos mandos e desmandos dos menestréis legalistas, hagiógrafos, iconoclastas, revisionistas e negaciostas, Mieville marcha, firme e resoluto, num relato contundente e assertivo.

É-me realmente surpreendente ver que Mieville tenha conseguido levar seu texto ao ar da gráfica: fico imaginando como o editorial da Verso recebeu esse texto repleto de críticas e eventual maldade diante dos (ainda relativamente jovens) Lenin, Trotsky e Stalin (personagens de menor notoriedade são submetidos a escrutínio tão ou mais rigoroso). Mais de uma vez diz-se que Lenin, Stalin ou Trotsky erraram, o juízo presente ali em todas as letras e sem ponderações condescendentes.

E é esse clima de análise pesada que leva o leitor a se indagar reiteradamente, “mas ele está do lado de quem?”: afinal, a despeito da inclinação canhota da narrativa, toda a esquerda russa acaba sendo, em algum ponto, duramente criticada. Desacostumado a esse tipo de ponderação rigorosa, habituado ao “ame-o ou deixe-o”, o leitor brasileiro vai acumulando vertigem em busca da localização da narrativa no espectro ideológico.

E é aí, a meu ver, que Mieville acumula maior mérito. Julgo, pessoalmente, que seu domínio da prosa e seu talento como escritor são muito menos importantes que sua habilidade em navegar de forma irrastreável em meio à nossas cargas de mapeamento e captura ideológicos; Mieville escapa aos recenseamentos e circula nas zonas cinzentas de nossos territórios mais usuais de pensamento – no caso de Outubro fá-lo em pleno domínio esquerdófilo, o que acentua ainda mais sua habilidade quanto a isso.

O que não faz dele, obviamente, alguém de direita ou um inimigo da esquerda – nada mais distante que isso. Sua circulação sem concessão, no entanto, faz supor que a maior parte dos caciques do pensamento de esquerda ver-se-ão incomodados.

E é por isso que me surpreende sua capacidade de imprimir esse livro, e de fazê-lo na Verso e na Boitempo. E é por isso, ainda, que me alegra seu feito – por indicar que há, ainda, espaço de pensamento não saturado, que há espaço para manobras pensantes, há espaço para militância não aderida. Alegra ver que editoras de esquerda, como Verso e Boitempo, publiquem uma obra que proponha tão claramente que é necessário pensar, repensar, reinventar, é necessário fazer a crítica. Mieville mostra que há campo para avanço firme, não entrincheirado.

Que não surpreenda a recorrência, aqui, de termos e metáforas espaciais e topográficas: outra marca registrada de Mieville, para além da astúcia (e ironia) sem concessões, é o pensamento geográfico. O livro (ao menos em sua edição inglesa) abre com dois mapas, um de Petrogrado de 1917 e outro da Rússia da mesma época, e a narrativa recorrerá insistentemente à espacialidade dos acontecimentos: pontes, ilhas, ruas, praças, bairros marcam a própria respiração dos acontecimentos. Mieville é um pensador dos espaços, um mestre dos nichos e movimentos. Nesse sentido entendo que sua militância pensante é pautada por uma guerrilha pelos territórios e pelas narrativas, sempre locais. Mesmo em sua ficção – como em “A cidade e a cidade” e “Estação Perdido”, as duas obras já traduzidas – os espaços pautam os fatos, fazendo com que a narrativa e o próprio pensamento sejam atravessados, ou melhor, sejam atravessando os espaços.

Esses são os termos da narrativa de Mieville. Posto isso, o resto é história: a história da Rússia pré-1917, a Revolução de Fevereiro, a Duma, a ameaça contra-revolucionária, o fantasma vivo da Primeira Guerra e do front dividido com a Alemanha, tudo culminando em Outubro – um Outubro narrado com uma impressionante carga de sarcasmo e crítica, sem elegias e hagiografias, sem pompa e com toda atenção à circunstância.

Não por mero gosto iconoclasta – parece haver um tanto de gosto iconoclasta, mas ele parece servir a algo mais abrangente e propositivo: a crítica necessária à esquerda para seu re-enquadramento, sua reinvenção. O tom ácido que reveste a narrativa, longe de desmoralizar, serviria a uma renovação da esquerda – desinflar os mitos para torná-los mais nossos e menos do Olimpo. Além disso, mas não menos importante, o tom mundano e super-real da narrativa confere um tom pragmático e concreto às ponderações e juízos, de forma que as avaliações que o autor tece acerca de Lenin, Trotsky ou das instituições da esquerda russa deixam de parecer ranços de uma filiação ideológica específica e passam a parecer juízos de um pensador crítico em contato frontal e honesto com uma cadeia de acontecimentos históricos.

Essa, a meu ver, a maior conquista de Mieville: narrar 1917 sem submeter a narrativa às hipostasias mais tacanhas (da esquerda como da direita mais obesas) e sem deixar as abissais diferenças contextuais, culturais, geográficas e ideológicas entregarem o relato ao estatuto de uma triste fantasia idílica de um estranho passado. 1917 passa a ser um episódio histórico dos mais instigantes e intrigantes, levantando imensas e urgentes questões a todos nós que nos importamos com o mundo e aqueles que o habitam.

Considero, enfim, que o leitor brasileiro deve aproveitar a chance e a ocasião que o livro oferece. Porque, como disse, não se trata apenas de 1917: o relato pretensamente histórico nos conclama à atualidade da questão que 1917 porta consigo, e que transporta a nós; questão tão simples quanto urgente: é possível mudar? É possível propor mudanças, querer mudanças? É possível pôr abaixo as podres paredes de nossa democracia corruptalista, nossa falsocracia moralista? A epígrafe que Mieville adota para seu livro é ilustrativa: duas linhas cheias de pontos, adotadas por Mikolai Chernyshevsky como “relato” do que deve ser feito por ocasião de uma revolução. A revolução é um convite ao insondável, é uma aposta no que pode vir. A revolução é o contrário da governabilidade: é a afirmação do que se deseja, a despeito do que “convém”.

Revolução diz respeito a isso. Não é necessário camiseta ou bandeira vermelha para atinar com a questão. Afinal, vivemos em um país regido por um presidente que não foi eleito, rejeitado pela ampla maioria da população, desviando denúncias de corrupção através do recurso aberto e declarado à compra de votos em troca de benefícios coronelistas. Nenhuma classe cidadã apoia o que vivemos: não há grupo algum apoiando o governo, à direita ou à esquerda, nem os inssurretos de 2013 nem os inssurretos de 2015. Se algo sustenta esse governo, e a situação calamitosa de nossa nação, enquanto Estado, é a inércia, a submissão aos desmandos da “mão invisível” (está mais que claro que Temer não governa por si, mas sim como marionete de desmandos escusos de interesses privados: governa para banqueiros, governa para conglomerados, para agroindustrialistas).

Cem anos depois, duas Guerras depois, cinco gerações depois; um outro continente, uma outra história, uma outra circunstância, um outro povo, um outro mundo. E no entando… 1917 é hoje; pode ser hoje; tem de ser hoje.

Enfim: por que ler “Outubro”, de China Mieville?

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O livro na edição da Boitempo

 

Resultado de imagem para october mieville

E na edição original da Verso

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