Aviãozinho

Te escrevi uma carta.

Estava eu lá, todo tinta preta, vertido e versado em palavra, estava eu todo lá.

Eu, todo lá, a ser entregue a você.

Me escrevi numa carta, a remeter a você. E eu estaria contigo, como nunca estive sequer comigo. Eu seria a mancha que diz dos interiores, a mancha de mim a dizer-me em interiores, e você poderia ler, ouvindo música. Poderia ouvir música, deitar na cama e ler-me todo ali. Saberia de mim tudo.

Aí eu me dobrei num aviãozinho. Não sei por quê, mas foi o que fiz, dobrei-me todo num aviãozinho de papel.

Lancei-me por aí. Voei-me por aí, mundo afora. Um aviãozinho de papel, planando a cidade, as pessoas e os carros, suspendendo os olhares ao sabor do vento. Eu inteiro ali, eu tinta preta a planar pelos céus sujos dessa nossa suja cidade.

Eu passaria uma vida a planar, se pudesse, mas a tinta fez pesar o papel, as asas e o vôo, fez-me pairar mais próximo e eventualmente pousar, tranquilo, no asfalto.

Queria fazer-me flor de papel, e se pudesse sem dúvida seria uma das mais belas flores de papel a abrir-se todas ao olhar dos outros, meus segredos já não secretos, expostos ali entre minhas dobras, contemplando o sol e o sol me contemplando, as pessoas contemplando minhas dobras a contemplar o sol.

Mas eu não sei dobrar-me em flor – não assim. E por isso estive ali, aviãozinho, meu ser inteiro vertido em tinta dobrada em aviãozinho, eu ali inteiro vertido e dobrado e estendido, estendido no asfalto e ao sabor da cidade, à espera do acaso a me levar embora, consigo, para onde fosse.

Eventualmente vieram buscar-me. Um senhor, provavelmente chamado José, vestido de gari porque um gari ele era. E varreu-me para sua pá, e verteu-me em seu latão, e olhou-me ali e riu-se sem dentes. Recolheu-me sem jeito e meteu-me no bolso. Varreu e varreu e levava-me consigo, eu e meus segredos que a ti e só a ti pertenciam, entregues ao mundo e dobrados em aviãozinho, varrendo a cidade a partir de suas sarjetas, de suas sujeiras, conhecendo o avesso da cidade que não me via e não me veria ali.

José levou-me à sua casa. Saí de sua calça laranja e entrei em seu jeans fajuto, tomei um e outro ônibus, tomei o trem, estive em meio a tanta gente, tanta gente. E ninguém não me via, pois que ninguém sabia que um tipo como José levaria as entranhas de alguém dobradas num aviãozinho e metidas em seu bolso, vistas ainda que não lidas.

Ao cabo de uma infinita jornada pelas linhas e pelos trilhos e pelas ruas e vielas e pela arte do crepúsculo a refulgir no zinco, chegado no barraco presépio de José, passando pelas galinhas e pela horta que ali José tinha, enfim conheci Maria. Maria Mariinha, menina metida em meninices tantas, a filha do José, entretida em ser-se menina e pobre e inocente e condenada à vida Maria.

Mas ainda Mariinha, ainda Mariinha Maria me conheceu, pois que José me trouxe consigo para que Maria me lesse, me tivesse consigo, se brincasse comigo e me conhecesse os segredos.

E Maria, pois que ainda Mariinha, e ainda o brilho nos olhos, e ainda a mão que não hesita, e ainda a leveza e o sorriso, Mariinha pegou-me e voamos juntos. Voamos por sobre o zinco, por sobre as quadras de terra, em meio às roupas no varal, estivemos juntos e rindo como se tudo aquilo fizesse algum sentido. E por estarmos sentindo o sentido, o sentido havia, e o sentido éramos nós a senti-lo.

Mariinha descobriu-me os segredos. Todos eles. Sem abrir-me, uma vez sequer, conhecia-os todos.

Até que enfim, cansada, sentou-se a um degrau qualquer, numa escada qualquer a levar a algum lugar nenhum, e acomodada ali em sua meninice de acomodar-se a um lugar qualquer, acomodada ali ela teve o papelzinho que o avião desencantado era, e teve enfim o olhar afundado na esquisitice de ser ali um aviãozinho carregado de tinta e dizeres. E Mariinha, ainda o brilho, nos olhos, ainda a mão que não hesita, Maria mãe da inocência do mundo, abriu o aviãozinho.

Abriu o aviãozinho e era eu ali. Eu, minha querida, eu que nunca fui a lugar algum, estando como sempre em toda parte e em lugar nenhum. Eu que era uma carta a ti, eu que era todo seu, vertido todo em ser-me seu, eu desfiz-me ali em ser-me todo à Mariinha, Mariinha que fez-se toda Mariinha ao ver-se minha, entregue ali à sina de ler-me ali, vertido todo, nessa carta que era, toda minha, toda sua, sempre entregue, dobrada e voando e perdida encontrada a voar-se por aí.

Que a encontrasse Mariinha, tendo atravessado as linhas e os trilhos e o zinco, o asfalto e a terra e as crianças e a roupa no varal. Que a encontrasse você, deitada em sua cama, ouvindo música. Que a encontrasse o acaso, perdido nas ruas e perdendo as pessoas a se perderem de si. Que a encontrassem na sarjeta, vagando perdida. Que a encontrem no ônibus, em suas casas, nos lábios de seus queridos e conhecidos.

Que eu me encontre nela. E me dobre em aviãozinho.

E que te leve comigo, a voar por aí. Ao sabor dos ventos, sobre o asfalto. Sarjetas, vias e trilhos.

Singraremos os mares de gente.

Tinta no papel, e um amor imenso, seremos eternos, intensos, imensos, e um mundo todo, e eu, e você.

Pois que sou aviãozinho – inteiro lá dentro, em meio a essas dobras, a essas letras escusas, no ar comprimido entre as dobras, no vento que me conduz, a lugar nenhum e a onde quer que seja.

Eu, aviãozinho, pousado à sua porta, esperando você.

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