Demora

Ao Martin, ao seu ser de outro tempo, e ao meu não entendê-lo o melhor que posso


Corre o tempo.

Corre como um rio, convida à serena habitação de seu burburinho. Em meio ao outro, menor, mais afoito burburinho, corre o rio em seu mudo, pacato, inevitável, inaudível burburinho.

Habitar o sereno burburinho do tempo em seu correr, habitar o inaudível.

Morar-se em demora,

escorrer de si,

correr de si. Ofício impossível, tragado aos volteios a adornar o inexorável. Pois correr de si é o escorrer de si, esparramando-se, as brumas do burburinho ali, a marcar o alheio que é ser envolto em conscienciosos,  conscientes, dedicados bons propósitos.

E, a propósito dos bons propósitos: ao perder-se de si, ao irradiar de si, afastar-se de si, afluem os bons propósitos em meio aos demais propósitos, depósitos prepósteros de uma vida saturada, obliterada pelo desengano de querer-se alguém pra além do engano.

Engano esse que, salvo engano, esganar a gana que, mais além da grana, esparrama como grama em meio à lama que habitamos, ser-se alguém em meio ao caos.

E o caos, famigerado, escorraçado, o perseguido caos, perseguido caos a perseguir-nos mais, o confuso, intempestivo caos, julgado e condenado antes que visto e, ainda assim, a fazer-se causa.

Por causa tem-se, em tempo, o manto luxuoso de  palavras gastas empenhadas, penhoradas em salvaguarda da amada notoriedade perseguida, aristocracia perdida da superioridade inventada da palavra ouvida, há tanto, tão longínquo, mítico tempo, palavra soprada a tornar-nos habitantes da palavra, sagrada a palavra e sagrados os homens, a bajularem-se em polvorosa aflição. Desfia-se, enfim, o palavrório em manto, a acolher nossos ombros, a correr-nos as costas, a deitar-se aos nossos pés, a enrolar-se em meio aos nossos pés, a estender-se aos infinitos, e sempre, sempre enrolando-se ao nosso redor, fazendo do nosso redor o infinito, sufocando o infinito ao nosso redor, sufocando-nos ao redor do nosso infinito perdido, a laçar-nos as pernas em maravilhosa e desditosa aventura, a lançar-nos aos infinitos a consumir os mundos, sempre ali tão longe, do lado de lá do nosso manto, longe demais.

Longe demais. Sempre longe demais, um passo além de onde a vista alcança, o burburinho segue, insiste, sempre ali, pacato, a ser sempre sempre.

A aventura de sermos nós, a desfazermos nós, a descobrirmos nós que ao desenrolarmos somos, nós que eu e você somos, perdidos um ao outro sob o eterno manto do desengano que nos abriga e acolhe.

O tempo a gente inventa. Apresentou-se a mim, num tempo que já não guardo comigo, essa sentença a que passei a pertencer, demorando a entender, e me demorando ao entender, que o sujeito é o tempo, que predica a gente, e que o burburinho, esse sempre, tão sempre burburinho, esse burburinho sou eu.

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