Oceano

Louisbourg Ocean Cliff V1 is a photograph by Timothy Gray which was ...

“Devagar e sempre”.

“Frustrante”,

“adiante”,

“sem retorno”.

Ele corre. Cansado, frustrado, estrada afora, adiante, sem retorno. Corre como pode, tropeçando, forçando-se, esbaforido, ridículo de si a si. Olha as árvores passando ao seu lado, ficando para trás – queria, precisava que elas passassem mais rápido. Precisa chegar logo. Não aguenta essa suspensão, esse excesso, esse tempo que insiste em passar, sempre, sempre, sempre…

Por que o tempo não passa de uma vez?

Ouve seus passos atrabalhoados ressoando em seus tímpanos, sente-se um relógio de areia a correr desandado, sempre devagar, sempre a vagar, sempre fora do tino. Eventualmente vai poder olhar e ver-se enfim esvaído, anseia por isso – mas por enquanto tudo que vê é esse esvair-se inútil, inefetivo, intransigente, sempre sempre.

Percebe que está cansado. Sente o ar lhe faltar. Pararia, se pudesse, mas sabe que não pode: não suportaria a vergonha, e não suportaria sobreviver a si mesmo. Que sentido faria?

Segue correndo. Ridículo, falseado, desenganado. As árvores seguem sua caminhada tranquila rumo ao seu passado, vão sobrevivendo a ele, sem pressa, sem medo, sem piedade. São árvores centenárias, provavelmente já estavam ali quando ele nasceu. Provavelmente já eram velhas de si a si, já tendo sobrevivido a tantos dele e a tantos de nós: nós os transitórios, nós os pensantes, os excedentes – nós, relógios de areia. Nós, sempre sempre a escorrer, pouco demais, sempre demais.

Faz a curva da estrada e sente um alívio inconfesso. A estrada desenha uma subida um tanto íngreme dali em diante, acolhendo sua sensação de esforço, dando-lhe contorno e sentido, conferindo à marcha a drasticidade que ele precisa para organizar em uma imagem o sentido da superação e da tragédia.

Mas ele desacelera. Perde ímpeto. Vê-se reduzindo a velocidade, como um velocista que poupa a si mesmo num momento estratégico da corrida; isso obviamente não faz sentido algum – e no entanto ele não consegue não se poupar, não consegue correr subida acima como quem não tem que sobreviver a si mesmo.

Como não sobreviver a si mesmo?

Como não se poupar?

Olha mais uma vez as árvores, robustas, tranquilas, indiferentes. Tantas árvores, cada uma tão indiferente a si.

Uma árvore não é nada, uma árvore não existe. Imagina-as consumidas por um incêndio – robustas, tranquilas, indiferentes.

A subida cede e ele retoma o ímpeto. O desfiladeiro aparece à sua frente como se ele não soubesse que ele estaria lá.

Seus últimos passos.

Seus últimos grãos.

Ele pula.

Abaixo, tão abaixo dele, as pedras estendem-se em direção ao amplo mar. Amplas ondas valseiam pelo amplo mar, e é tudo tão tranquilo, é tudo tão.

Sente uma vertigem. Sente medo.

E já não sente nada.

As ondas abraçam as pedras. Ao baque surdo do primeiro encontro impõe-se a sonoridade mais espumosa de seu avanço, conforme as ondas percorrem seu breve abraço em direção a ele. Tocam-no, só de leve, delicadamente, descompassadamente, mas sempre, sempre.

Ele é parte. Ele é um, e é ninguém, e é tudo. Está lá, como as pedras e como as ondas – robusto, tranquilo, indiferente.

Em princípio ele é pedra macia, espatifada de si a si, ciente demais de seu passado, de sua história, de suas angústias. As feições estão lá, o rosto está lá, e o coração, tudo o que falhadamente foi.

Tão um.

Tão só.

Mas aos poucos, e sempre, sapientemente, desapressadamente, descompassadamente, o mar, e as pedras, seu estender-se, seus abraços, sua longa e e eterna dança. Ele já não tão só. Ele pedra, e areia, esvaída, espuma, ele as ondas, ele e o tempo, ele.

Aos poucos, e sempre, ele já não robusto, tranquilo, indiferente. Um relógio já não relógio, uma pedra já areia, uma areia já espuma, uma onda já oceano.

Um dia, um incêndio. O oceano em chamas. Gentes, e relógios, investigações e emoções e enganos. Um dia tanto, e corridas, destempero, e a urgência, o tempo que se fazia não passar, insistira em passar. Um dia, ele tão ele.

Mas não mais. Pois ele já não rosto, já não roupas, não alguém. Ele pedras e areia e espuma, ele abraço e as ondas, ele a valsa, sempre em tempo, longe longe a perder-se, horizonte afora. O sol se põe, e as ondas.

A valsa.

O abraço.

As ondas.

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