Dizem que viver é correr de fora a fora a angústia, como se os dias vividos fossem o corte que supura o mundo dos acasos de que ele é grávido. Diz-se que os cortes às vezes são mais profundos que a dor, rasgando o ventre da vida vivida, cravando no sulco do percurso a dor excelsa, majestosa, excessiva, como luxo, ao passado que em outras ocasiões os cortes não têm fio, não sulcam a carne que lhes acolhe, e a trajetória que daí decorre é como o desafinado da agulha que perde o corte do vinil, música que poderia ter sido mas bastou-se em saltitar bobamente ao largo de si.
Eu mesmo demorei uns anos até descobrir que me sobrava a mim mesmo, perdera o propósito e estava ali como que a passeio, como se a vida tivesse carne sobrando e fizesse ali um serzinho a mais, não quer fosse servir para algo, era mesmo um desperdício, feito por descuido de quem já tinha a mão na massa, a ser jogado fora quando o excesso ficasse demonstrado pela evidência mesma. E foi aí que comecei a roubar.
Sabia de Saint Genet que tinha uma vida com sentido, mas o sentido de Genet era marcado pela falta: quem nasce pobre tem na inconformação um propósito e encontra em si um corte na existência gorda do conformismo, o próprio ser já é por si só um disparate, e todo disparate é um convite à arte. Saint Genet tinha à sua frente as cartas necessárias para ser santo, já que só quem é pobre de materialidades e gordo de potencialidades faz de si um santo – santo rico é hipócrita, enganador ou chantagista. Eu, nascido em excesso e sem propósito outro que boiar na piscina até virar do avesso, encontrei no roubo um jeito mesquinho ainda que digno de insultar a vida, e do insulto tiraria, com alguma sorte e se o acasso me sorrisse, o indulto para a sem-gracice que é ser quem eu sou. Com sorte poderia fazer de mim o que não era de mim antevisto e projetado – coisa que até agora não aconteceu, mas confio no azar e não me respeito mais, então, quem sabe.
Agora veja que não faria sentido que eu roubasse coisas que servissem para algo, perfumarias dessa vida obesa, citadina; digo, poderia roubar coisas assim, contanto que elas não o fossem quando eu as roubasse, como se eu roubasse gordura – um computador como gordura, um relógio como gordura, dinheiro como gordura, gordura, como as gorduras que se roubava no Clube da Luta, como gordura. Sabonete como gordura.
Eu sei, você não entenderia; e eu sei que você tem medo. Mas veja que não faz sentido que eu te faça algum mal, a você enquanto senhora gorda – quando eu falo de gordura eu não me refiro à gordura das pessoas, à adiposidade dos corpos das pessoas. Sabia que as pessoas não me interessam em absoluto? Você, por exemplo: eu vou sair daqui com seu celular e sua bolsa, sim, mas não me interesso por elas, e não me interesso por você tampouco. Imagino que seu celular e bolsa farão falta, sei mesmo que farão, e sinto muito por seu desespero, e espero que o desespero te desesperte, te desemperre, te desgarre os dentes dessa carne fofa em que imagino que você fia seus dias largos. Mas não faço isso para ajudá-la, porque eu realmente não me importo; em absoluto, não me importo.
Pode ser que daqui uns dias eu saia daqui, sabia? Dessa cidade, digo, saia de São Paulo. Aí eu sairia daqui e andaria por aí, sairia a pé por uma estrada qualquer, pela Raposo Tavares, digamos, roubaria uma coisa aqui, outra ali, conversaria com algumas pessoas sem sal como você, teria mesmo uma pequena amizade arrogante com vocês, como você tem com suas amigas de salão. Talvez em algum lugar do caminho contraia uma dor de dentes como aquela do russo, do subsolo, e ela me faça companhia por uns dias, até que o tédio arranque ela de mim e eu mude alguma coisa.
Dizem que morrer é correr de fora a fora a angústia, cortar a carne gorda da vida e tirar dela os vermes que fazem dela uma vida. Como a terra: um dia a terra supura de si os vermes, e aí ela seca e fim. Já pensou nisso?
Olha só, vou ficar com sua bolsa, ok? E eu acho que não preciso te avisar: é melhor para você que não grite nem fale com ninguém pedindo ajuda – a mim mesmo tanto faz, eu te mataria pelo bem da coerência e não me importaria com o que a mim me ocorresse. Entende? Então recomendo que volte a sua casa, desabafe com suas empregadas, mande-as embora mais cedo para casa só por hoje, abra um champagne e se dê um banho de banheira com sais de banho e o que mais te parecer necessário, costure de volta pra dentro de si a verminose que é essa sua gorda vida galante, infectada de hoje em diante por esse impropério que sou eu, que é a vida, que somos nós. E caso te passe isso pela cabeça, já resolvo por antecipação essa sua dúvida: não, eu não quero te ensinar nada; eu quero o caos, o acaso, e o ocaso. A bem da poesia, você pode no máximo sugerir com um sorriso angustioso que isso que lhe ocorreu hoje foi pouco mais que um “causo”.