Balas e rojões de um festim esquecido

Tenho visto tanta gente circulando informações sobre revoluções, mobilizações e atos que deveriam não ser, ou poderiam ter sido, ou que não foram como deveriam ser que julguei apropriado lembrar nesta minha coluna de episódios históricos tão claramente não ocorridos em nossa história recente. Os bons leitores de Perfume, de Patrick Suskind, certamente estarão lembrados do impacto do esquecimento na memória das coletividades, particularmente quando se põe em xeque a materialidade dos acordos de normalidade civilizada.

Salvo engano de minha já desgastada memória, o princípio de tudo deveu-se a um singelo gesto do grupo Matilha Urbana – grupo que daria origem ao CMU, quando coletivos passaram a integrar os pleitos na retomada democrática após a desastrosa Primavera Evangélica que impôs um estado de exceção lamentável a nosso berço esplêndido.

O grupo Matilha Urbana, como ia dizendo, lançou seu repúdio à inclusão de ritalina ao programa de aleitamento infantil nas creches de forma inusitada: distribuiu milhares, talvez milhões de bolas de gude (que não sei até hoje de onde obtiveram) por toda a extensão da Ciclofaixa (que foi, para informação dos mais jovens, uma espécie de parque de asfalto em forma de verme intestinal, que se instalava em São Paulo aos domingos para usufruto específico de ciclistas; a atividade do Matilha Urbana e a instalação de pedágios levou a iniciativa ao descrédito e eventual ocaso). A ocasião, curiosamente, encontrou repercussão positiva, e a maior partida longitudinal de gude se deu nesse dia.

A popularidade da medida aguçou o tino criativo dos grupos de mobilização, e a cidade em poucas semanas tornou-se pivô de um estado de absurdidade onírica em ritmo quase diário. Lembro, por exemplo, do ato “política é uma zona”, que levou prostituas em roupas de baixo e gravata para o acesso da Câmara dos Vereadores (que terminou, por sinal, com uma farra digna de CPI entre as manifestantes e os dignitários); do ato “verde é o novo preto”, que pintou de verde os faróis amarelo e vermelho das principais avenidas da cidade (com consequências nefastas, há de se lembrar); muitos outros poderiam ser citados, mas creio que a mensagem já se deixa entrever por esses dois exemplos.

Todo gesto político de circunscrição passou a ser plataforma de novos atos, de forma que o acesso à sobriedade do poder instituído viu-se sem chão e sem acesso à mídia. O prefeito Kai’sab, quando foi prestar depoimentos, viu-se cercado de manifestantes fantasiados como o personagem Presuntinho; o então vereador Suplício foi instado em todas suas declarações a cantar, deixando-se distrair, e eventualmente transformou a Câmara em um Videokê com transmissão ao vivo para todo o Estado.

Sem centro e sem reivindicação, o movimento foi sendo aos poucos capturado pelas muitas e mui disponíveis bandeiras, aqui e acolá, à direita e à esquerda. A já citada Primavera Evangélica foi antecedida em semanas pela Comissão instituinte que propôs a autonomização de São Paulo em relação ao Brasil, e em dias pela aprovação da Reforma Habitacional na cidade, cujos frutos desfrutamos até hoje. Os inúmeros desdobramentos das manifestações se sucederam de maneira frenética, e é seguro dizer que grande parte das modernizações de nosso código legal decorrem desse esquecido período imaginário. Fio-me, no entanto, na avaliação de Benetti (BENETTI, 2011), que afirma que esses episódios figuram como uma explosão grotesca num período que de há muito imergia na política mais circense. No diagnóstico cético de Benetti, as manifestações e mesmo as conquistas legais são fruto e exemplo de um período brasileiro em que as irrupções pontuais de protagonismo popular são prontamente incorporadas pelo maquinário estabelecido, que por sinal – alega Benetti – se beneficia desses carnavais para cingir de história seu império cinza.

Peço perdão aos leitores por minha escassa memória, que priva-nos (a mim também) da devida pontuação de datas, locais e personalidades. Sei que tudo isso se passou em um passado não muito distante, e no entanto inteiramente inacessível à memória dos despertos. Sei também que a Primavera Evangélica, mesmo deposta, deu forma e ânimo à quimera que hoje senta às mesas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário nacionais.

 

Roberto Jabeiro, jornalista e cientista social, é colunista e articulista de situações imaginárias, contribuindo em periodicidade indefinida às páginas de errâncias.

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