Alguns anos atrás conheci uma instituição particular, fechada, de tratamento para dependentes de álcool e drogas; era uma instituição de referência, onde o tratamento era bem caro. Cheguei nesse lugar com a perspectiva de integrar a equipe de ATs que acompanhava as saídas eventuais de alguns dos pacientes do lugar, aos finais de semana.
Os ATs não eram parte integrante da equipe, era uma espécie de “terceirização”: a instituição propunha o modelo do AT, a família contratava (ou não) à parte do tratamento e o AT era designado para conduzir a saída. A instituição, portanto, mantinha esse serviço ali, fazia a mediação e garantia dispor de uma equipe suficientemente numerosa e capacitada para os termos dela, mas não “contratava” os ATs – pegava o dinheiro daqui e passava para lá, chamava o AT para “ocupar a vaga”.
Não tenho muito a dizer sobre o trabalho porque acabei não ficando nesse trabalho, tinha outras prioridades e percebi algumas divergências em relação à linha de trabalho. De qualquer maneira me chamou muito a atenção o fato de uma instituição “pesada”, de moldes tão tradicionais, tenha construído para si um anexo desse porte (não eram poucos ATs, e eles eram supervisionados). A razão de meu interesse vinha dessa aparente mudança na ordenação da relação entre as instituições “fortes” e o fora: uma clínica de tratamento em regime de internação, com regras rígidas e um controle intenso sobre seus pacientes propondo uma participação do AT inscrita ao regime de tratamento.
Esse caso não é único: tem se tornado cada vez mais frequente a aparição de equipes de AT associadas a escolas, a hospitais, a CAPS, a clínicas, a residências terapêuticas. O processo é intenso, rápido e não parece reversível: o acompanhamento terapêutico faz parte das práticas de cuidado e de todos contextos em que se faz necessário um “fortalecimento da contratualidade”, como sugere um protocolo de atendimento especializado do Ministério da Saúde[1].
Bem mais recentemente me envolvi em outro projeto relacionado ao AT: um grupo de estudos. Como postei há pouco tempo nesse mesmo blog, o grupo propõe uma oportunidade de estudo e discussão do AT em interlocução a campos que parecem particularmente influenciados e influenciadores da prática: a clínica, a cidade e a política. O que queríamos – eu e Paulo Beer, que coordena a proposta comigo – era discutir os muitos temas que surgem a partir da implementação de uma prática com a vigor e a penetração que o AT acabou tendo.
Construiremos a trajetória com os participantes e em função do grupo que se forme, e nessa medida é difícil antecipar como a coisa vai se desdobrar (embora tenhamos predileção por habitar essa interlocução do AT com outros campos e por isso estejamos ansiosos por discutir AT a partir de textos oriundos desses campos, além de outros desejos que nós, como coordenadores, temos).
Na verdade, mais do que apresentar o grupo e suas peculiaridades, quis escrever para comentar dois aspectos que têm me chamado a atenção: a disseminação de espaços de formação e discussão relativos ao AT e a disseminação do AT como prática; temas semelhantes, mas bem diferentes.
Começo pelo segundo ponto. Muita gente comenta da rapidez e intensidade com que o AT se prolifera e expande enquanto prática e enquanto discurso. Se alguns anos atrás era assunto lateral e bastante específico, hoje em dia pulula em eventos, congressos, grupos de estudo, formação, especialização, em disciplinas de graduação e pós-graduação em faculdades, se insere em âmbitos novos. Os comentários, no geral, vem com alguma nota de preocupação, ou no mínimo um espanto com uma nota de estranhamento.
Eu, particularmente, também me impressiono com a reiteração do AT, como prática e discurso; confesso que cheguei até a ser desses que “estranham” a coisa, com discurso ranzinza de oportunismo mercadológico e tudo o mais. Mas recentemente me peguei pensando de outra forma, e o ponto de virada – vejam só – é a história.
Não deve ser segredo para ninguém que lê o blog ou me conhece que eu me interesso crescentemente pela história – em particular pela história das práticas de cuidado, e pela história da psicanálise. Pois bem, nesse contexto, e lendo a respeito dessas coisas, me dei conta de uma coisa: a presença do Zeitgeist[2] nas práticas de cuidado e tratamento é tanto ou mais premente e decisiva quanto em relação aos bens de cultura e concepções de mundo (Weltanschaungen). Ao longo da história do alienismo, do que Foucault chama de “proto-psiquiatria” (e que Ellenberger chama de “primeira psiquiatria dinâmica”), pela psiquiatria e psicanálise, as práticas, as concepções sobre as práticas, os desafios percebidos e a concentração dos esforços se organizam com coerência e coesão interna. Isso significa que a cada momento as práticas de cuidado percebem as coisas – as doenças, os doentes, os tratamentos, as lacunas nos saberes – como podem[3]. Pois bem, o acompanhamento terapêutico foi surgindo conforme as mudanças nas práticas de cuidado e tratamento mudavam, ocupando um lugar específico que veio a se tornar central ; de forma geral dá para dizer que o lugar do acompanhamento terapêutico – lugar multifacetado e um tanto caleidoscópico – é o “entre”. O “entre” que é o coração das mudanças nas práticas de atenção e tratamento: porque o que mudou foi justamente a falência dos modelos centrados em instituições firmes, fortes e fechadas, em benefício de modelos de tratamento que favorecem passagens e circulação com a vida “extra-tratamento”. No limite esse lugar “extra-tratamento” hoje em dia está em vias de desaparecimento, e as formas de cuidado e tratamento foram se alastrando e favorecendo o nascimento de formas “cotidianas” ou “extra-tratamento” de tratamento. Se de fato é isso que se passa ou não é outra história: o ponto é que as instituições fechadas vêm perdendo impacto e influência na constituição da malha de serviços de cuidado, e as instituições mais abertas e maleáveis de tratamento convocam dispositivos que permitam essa “ligação” do tratamento com a vida. Como diz o tal manual do Ministério da Saúde, a contratualidade da pessoa – ou seja, como ela circula, o que faz, com quem anda, o que come, por onde passa – é uma preocupação dos serviços de tratamento e cuidado; o AT se conecta intimamente a esse tipo de passagem, porque o AT literalmente acompanha a pessoa na efetivação de sua “contratualidade” – ela está lá quando o “extra-tratamento” acontece. De maneira geral esse “lugar” do AT é um lugar cada vez mais premente nos processos de cuidado e tratamento, e na vida em geral (já que essa distinção entre a vida e o tratamento é cada vez mais precária); isso define, me parece, a importância do AT, seu crescimento, o quanto se faz e o quanto se fala.
Ainda outro comentário que mencionei antes e ao qual não retornei: sobre a disseminação de grupos de estudo e formação. Pois bem, a meu ver essa disseminação é consequência do crescimento e do reconhecimento da prática (embora as coisas em alguma medida se alimentem reciprocamente); como disse antes, o AT ocupa um lugar central nas políticas de tratamento e cuidado em vista da própria reorganização técnica e ideológica para a produção e promoção de saúde. Parece-me claro que todo campo em evidência e transformação rápida seduz e convoca interesseiros e caça-níqueis, mas isso me parece mais elucidativo em relação à natureza humana do que em relação aos campos que oportunizam os oportunistas. Se tivesse que propor um posicionamento, sugeriria que a multiplicação dos espaços de pensamento e discussão só tem a beneficiar, na medida em que as pessoas envolvidas se envolvem em nome próprio e não ancoradas em uma suposta “autorização” que algum curso, grupo ou programa “conferiu”. Ou seja: na medida em que a proliferação de espaços de discussão e formação esteja associada ao interesse em pensar e discutir o que se faz, e não em vender falsa segurança aos vulneráveis, acredito que estamos bem.
ANEXO
Queria aproveitar a oportunidade para veicular um convite, endereçado àqueles atuando com o AT ou com a formação e estudo do AT.
Olá,
estamos propondo desde o início de fevereiro a criação de um grupo de estudos sobre AT. O grupo não tem a pretensão de apresentar o AT, oferecer formação, capacitação nem especialização: trata-se de um espaço de pensamento, pensamento fundado e conduzido pela composição das pessoas que o frequentem.
Estamos propondo como enquadres os seguintes temas: clínica, cidade e política. A ideia é conduzir o grupo através de leituras e filmes que situem o AT sempre na interlocução com esses campos. Privilegiaremos, como forma de sustentar esse princípio, textos dedicados a esses temas (ou seja, não propriamente textos sobre AT) – o foco sobre o AT e suas características viria, não do texto em si, mas de nossa leitura interessada e discussão.
Consideramos que um espaço dessa natureza pode contribuir no contexto do pensamento, dos grupos organizados e das práticas do AT em São Paulo hoje.
Em consonância com esses princípios, gostaríamos de nos aproximar dos demais grupos que estudam, ensinam e trabalham com AT. Por isso escrevemos, para convidar todos que tenham interesse e disponibilidade para que nos mantenhamos em contato. Gostaríamos muito de poder saber, daqueles que já estão inseridos, como as coisas estão indo, que pontos parecem cruciais, quais aspectos precisam de mais atenção, quais deficiências sentem na fundamentação da prática, e por aí vai. Como grupo de estudos e como interessados e praticantes de AT, gostaríamos de fazer convergir as forças em ação, para que seja possível estabelecer um campo de trocas que ao mesmo tempo enriqueça o trabalho e as discussões, e também ajude a fortalecer o campo.
O grupo se reunirá todas as terças-feiras, às 19h, na Rua Alves Guimarães em Pinheiros. Estabelecemos o valor mensal de R$100 por pessoa (embora estejamos mais interessados no estudo e na interlocução viva do que no dinheiro).
Por isso estamos escrevendo a vocês, que atuam na formação e na divulgação do AT na cidade. Estamos à disposição caso queiram discutir alguma idéia, sugerir alguma coisa ou propor alguma parceria.
Um abraço,
Wilson Franco (Will) e Paulo Beer
[1] Mais especificamente o “linha de cuidado para a atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no Sistema Único de Saúde”, publicado recentemente pelo Ministério.
[2] Zeitgeist é um termo alemão que significa, grosseiramente, “espírito (ou fantasma) do tempo”; tem designado há alguns séculos esse fenômeno por meio do qual as ideias e práticas se organizam, em um determinado período, em função dos determinantes circunstanciais, a “ideologia” (no sentido amplo) vigente. O conceito de Zeitgeist, definindo que concepções se organizam temporalmente, pressupõe uma relativização da suposição de um evolucionismo histórico e a percepção de que as concepções mudam.
[3] Citaria como exemplo de Zeitgeist nesse domínio a prevalência dos debates sobre neuroses de guerra e neuroses traumática depois da 1ª guerra mundial; o debate acalorado sobre “diagnósticos” relacionados a gênero e sexualidade nos anos em torno de 1968; também os debates sobre diagnósticos com ancoragem política duvidosa (como a “esquizofrenia de progressão lenta” na União Soviética e seus equivalentes na China no começo do século XXI).