Nascido em uma noite chuvosa e sem lua, Teotônio definiu-se ainda jovem um valoroso cavaleiro, um guerreiro das luzes. Nem bem entrara em anos e já se arrojava, impetuoso, em busca de sinais de sombra e incerteza contra os quais se poderia bater; era um homem com uma missão antes mesmo de ser homem.
Sagrou-se homem, por sinal, como quem vai à guerra. Envolto em seus tenros quinze anos, ocupado da aurora ao poente com exercícios de toda sorte, morais, físicos, intelectuais, Teotônio dedicava o fim daquela tépida tarde de janeiro à poda das árvores da praça; convém assinalar, a propósito, que desde os doze anos Teotônio cuidava das praças da cidade, então chamada Luz do Brejo, assinalando aos curiosos que cuidava do que era dele, posto que ele era da cidade tanto quanto a cidade era dele. Ocupado com a poda das árvores, Teotônio tardou a reparar na chegada de inaudita senhora àquela erma paragem – ao final da tarde estavam já todos em suas casas, ocupados com os preparativos para a noite que se aproxima, e àquela hora apenas algumas galinhas e o vira-latas Pingo testemunhavam a dedicada e furiosa poda de Teotônio.
Finalmente cioso da presença da dama, Teotônio pôs-se em aprumos, o pensamento interrogado pela estranheza da presença.
– Que procura a senhora em Luz do Brejo?
– Como? Ah, sim; não sei bem, meu carro quebrou logo ali, na estrada, esperei duas horas e não passou nenhum carro que pudesse me socorrer. Não sei, precisava que alguém consertasse, ou me ajudasse a chamar um guincho, ou alguma coisa…
– Ora, acorres ao lugar preciso! Escolta-me até o local e em pouco tempo ponho em termos seu veículo!
Teotônio estava assoberbado, pressentia que algo em si deslocava-se. A visita, não bastasse ser uma visita em tão pacata paragem, parecia oriunda de outro planeta. Teotônio não pensava, mas sentia sua disposição oscilar entre a precipitação de um dos momentos decisivos que sabia marcariam sua história ou se, muito pelo contrário, encontrava-se face a uma apresentação da perdição, do descaminho, uma das muitas apresentações da sombra.
Teotônio acompanhava a dama, que tergiversava entre escritórios e facebooks, íncubos e artefatos de um mundo estranho. Teotônio deixava seu pensamento esvaziado acompanhar extasiado as estranhas divagações da dama, ocupando-se, carne, corpo e desejo com a presença física, a exalação, as curvas e os meneios da dama.
Chegaram ao carro, e lá estiveram por longo tempo enquanto Teotônio tentava consertar aquele carro, o segundo que via na vida (seu Bento tinha um carro, que chamava de Landau e pelo qual nutria anti-natural orgulho e apreço); não conseguiria se passasse três dias enfurnado entre as engrenagens. Aos poucos, tomado pela languidez da dama, pelo cansaço, pela confusão, pelo orgulho, Teotônio começou a agitar-se, supondo que a moça precisava acalmar-se, pois falava da necessidade de ir embora, e Teotônio percebia que ela estava tomada por alguma agitação; sabia que ela precisava ser acalmada, e precisava de alguma forma expirar aquela agitação, e era importante que ela percebesse que ele a estava ajudando, e que ele era um homem nobre e bom e só queria o bem da madame, e era importante que ela não resistisse…
Teotônio foi impelido ao mundo por uma missão. Teotônio era o homem que traria a verdadeira luz ao Brejo, para que o Brejo não fosse mais um brejo, mas expressão máxima da organização, do bem, da ordem e da corretude.
Filho de pais humildes e devotados à vida pacata, Teotônio sabia-se inspirado por ar divino; sabia superar em espírito a destinação prosaica de um brejeiro. Sabia ser grande.
Arremessado desde cedo aos foros centrais e legítimos de desígnio comunal, Teotônio destacou-se ainda jovem pela virulência e impetuosidade de suas participações. Jamais recorreu aos punhos, mas acorreu diversas vezes em direção a seus contraditores e questionadores; permaneceu praticamente sozinho ao longo de sua breve e candente trajetória política, temido por todos e ascendendo sobre ninguém.
Teotônio lutava para conseguir candidatar-se vereador por Luz do Brejo nas eleições na Cidade (o município de Luz do Brejo era distrito antes da municipalização em 1993) quando chegaram ao Brejo duas viaturas oficiais, vindas da cidade grande. A dama que passara por Brejo da Luz anos antes unira-se em matrimônio a um desembargador e, em meio a uma das muitas crises noturnas que marcara sua vida recente, confessara-se ao esposo; este, tomado em brios e cioso de suas obrigações e do direito a justiça de sua amada, pôs imediatamente em andamento o ofício que culminou na detenção de Teotônio – Teotônio o grande, Teotônio o bravo, Teotônio templário, Teotônio estuprador.
Na sombria cela em que cumpre pena, Teotônio observa impassível a circulação nervosa de seus companheiros; têm, eles e ele também, a alma atormentada, mas a ordem de seus tormentos diverge radicalmente. Em meio à atribulada história de sua vida, Teotônio sabe-se escolhido, sabe-se portador de um futuro iluminado; Teotônio compreende os desígnios que lhe cabem, e sabe que é somente diante da escuridão que o nobre cavaleiro batalha em nome da luz.
Calmamente admirando seus sombrios companheiros de cela, sentado num sombrio canto, Teotônio procura tranquilamente sua luz, sua clareira, seu caminho.
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