– Um café e um pão na chapa, faz favor.
Da mesa do canto, encostado à janela, vê-se o mundo acordando do lado de lá – os carros que passam, disciplinados e indolentes, infalivelmente presentes à procissão do dia que vem; a moça que vende os bolos com gosto de água de torneira, o café com gosto de água suja com açúcar; o dono da banca arrumando seu display, organizando os jornais; os pequenos apitos e sirenes da fábrica de passar o tempo que é a cidade.
Como das outras vezes em que se senta à janela depois de uma noite infrutífera em claro, ele gostaria que seus pensamentos estivessem ocupados com poesia, com música, com idéias; como das outras vezes em que sentou à janela depois de uma noite infrutífera em claro, vê-se às voltas com as contas para pagar, a roupa estendida no varal, o almoço na casa da mãe no domingo.
– Um café e um pão na chapa, é aqui?
O garçom dispõe a xícara e o prato à sua frente.
– É só isso?
A pergunta desastrada, desastrosa da mãe ressurge de repente, subindo rapidamente pelo esôfago, travando sua garganta: “então você fica em casa o dia inteiro tentando escrever, é só isso?”.
– É, só isso. Obrigado.
O mal-estar parece descer pelo seu tronco e se aloja mais ou menos na altura do diafragma; o pão na chapa de repente causa-lhe um certo enjôo. Sem que se dê conta plenamente, nesse momento sente-se chique.
Do lado de lá do vidro um homem aparece na parte de cima da casa em construção à frente da padaria. Carrega um imenso saco de cimento nas costas.
Sem camisa.
Forte.
Moreno.
Pedro Pedreiro.
Pedro Pedreiro reluz o sol da manhã – o suor do trabalho parece ser parte dele. Acima da rua e do lento despertar do mundo, Pedro Pedreiro refulge o ofício de tudo que é.
Pedro Pedreiro, inconsciente de sua grandeza, cria com seus braços fortes as confortáveis casas onde os homens brilhantes passarão suas noites infrutíferas em claro.
Havia uma pedra no meio do caminho; havia uma pedra no meio do caminho; havia uma pedra no meio do caminho.
Olha com algum desgosto seu café na xícara, seu pão na chapa, sua mesa do lado de cá da janela, infrutífera, incólume. Do lado de lá alguém que veio da obra compra um café de água de torneira e experimenta-o antes mesmo de pagar, o vento no rosto, a vida pela frente. Tendo pago pelo café senta-se num parapeito e contempla os transeuntes e o trânsito.
Do lado de lá da janela.
Gostaria de poder escrever o vento. Escrever os carros que passam nas ruas. Escrever os pensamentos tão reais que passam do lado de lá da janela, que vivem as ruas com todo o dolo, toda a intensidade de um trânsito que significa alguma coisa; em algum carro passando certamente alguém vive uma crise, uma questão de vida e morte. Do lado de cá da janela ele não vê, ele quer ver, ele não vê.
Pedro Pedreiro não está mais na laje da obra. Onde estará? Certamente fazendo cimento, o cimento que constrói o mundo, o cimento que cimenta as ruas por onde passam as vidas que carregam as pessoas. Antes de ser-para-a-morte elas vivem; Pedro, firme como uma pedra, constrói o chão por onde elas passam. Ele, flácido como geléia, pensa e não consegue escrever as idéias sobre a morte em que um dia elas tropeçarão.
Pedro Pedreiro deveria ser escritor; deveria contar as verdades profundas da vida imediata, da vida em ato, da vida, da vida. Ele…
ele e seu café expresso de água potável,
e seu pão que na verdade é uma mini-baguete na chapa,
e sua mesa e seu vidro
Ele fica
Fica lá de noite
A noite inteira
Infrutífero
Esperando o trem
esperando o texto,
do ano passado
para o mês que vem.
Olha impaciente à sua volta, buscando o garçom com o olhar ávido. Levanta o braço escrevendo “traz a conta por favor” num gesto tímido – tem a roupa no varal e as contas que precisa pagar ainda pela manhã.