Will,
Então, gostei muito desse seu e-mail. Parece que você conseguiu organizar melhor a minha pergunta até mesmo pra mim.
Acho que o medicamento tem realmente essa função que você descreve, mas acredito também que ele pode, nesse mesmo sentido e em outros, ajudar a pessoa com seu sofrimento. né?
Claro que quando ele é utilizado indiscriminadamente, até que a pessoa fique apática, isso é péssimo.
Mas me incomoda um pouco esse discurso que é até bastante difundido no circuito alternativo, tipo de jovens da psicologia, com posturas críticas, que são até bacanas, mas que exageram. Entende o que eu quero dizer? Tipo, eu fui te perguntar um pouco com uma questão assim: medicação, na verdade, em muitos casos, é necessária, né? Mesmo que, claro, a gente tome uma postura crítica a determinados usos; não podemos, ou não devemos negá-la em absoluto. certo? Talvez devemos utilizá-la a nosso favor, associando a outras coisas interessantes.
E… eu entendo a sua colocação, mas ainda fico me perguntando como que você acha que é feito isso hoje em dia. e mesmo tentando pensar num percurso histórico. Quero dizer, para além de pensar que o medicamento pode ser usado para ajudar as pessoas ou para enquadrá-las, que lugar ele tem? – no sentido de que uso é, em geral, feito dos medicamentos? Consigo supor que é uma pergunta bastante complicada, porque depende, é claro, do lugar: existem médicos mais críticos quanto ao uso do medicamento, mais esclarecidos dessa discussão, assim como existem médicos que passam remédios em toda e qualquer situação, e não consideram as outras formas de tratamento.
Mas, pela experiência que eu tive, no CAPS, por exemplo, que é um dispositivo produto da Reforma Psiquiátrica e que em geral se relaciona com a medicação e o tratamento da loucura, em geral, de maneira diferenciada, e pelos médicos que lá conheci (conheci mais de perto apenas um); eu senti que o uso que se faz é mais consciente, e sempre associado a outras formas de apoio ao usuário, etc. Será que esse momento histórico teve como uma de suas conquistas essa mudança, ou não?
Pois como a minha experiência é pouca, nem sei se posso afirmar isso.
Acho que o maior problema é mesmo o maior problema: é um problema muito maior, de poder, nessa sociedade. Mas você sabe dizer se, por conta disso, ultimamente tem se usado cada vez mais remédios? E você acha que, por exemplo, o SUS está livre dessas forças do capital?
Sei lá.
Acho que ainda tá confuso, mas resolvi mandar assim mesmo, pois acho que você vai conseguir esclarecer um pouco a minha questão de novo.
Um beijo
<w@g.com> |
4 de fevereiro de 2011 11:03 |
Para: <j@h.com>
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J,
bom que a primeira resposta te agradou; vamos ver como me saio agora.
Dessa vez você pôs mais coisas em jogo – três, se não me engano.
“A medicação às vezes é necessária, né?” Sim e não. No sentido de que ela torna possível a pessoa estar na nossa sociedade como ela é, sim. No sentido de que ela pode efetivamente ajudar a pessoa em suas necessidades, sim. Mas a medicação – de novo – é um artefato humano recente, e houve humanidade por muito tempo antes, e haveria ainda por muito tempo sem a medicação.
Eu posso parecer chato com essa minúcia, mas acho importante deixar isto claro: “o mundo” não precisa de medicação. A medicação é importante para incluir pessoas específicas em famílias específicas, em países específicos, de formas específicas. É legítimo? É. É justo? É. Faz bem pras pessoas? Quando bem-feito, sim. É necessário? Não – haveria outras formas de tratar e incluir e cuidar e dispor de comportamentos anormais.
Mas, pra simplificar, pensemos: bom, a sociedade é essa aí e os limites são esses – a medicação é necessária? Não de novo, mas pode ser a saída mais interessante. Aí entra a história do “bom-senso”, da “dosagem”. Por que? Porque o efeito das drogas é inespecífico e abrange uma série de comportamentos. Graças a deus (no meu entendimento) as indústrias ainda não têm a precisão de “cancelar” um determinado comportamento com uma droga. Por isso, quando a pessoa toma um remédio, ela vê transformados uma série de comportamentos seus – alguns que trazem sofrimento e exclusão, outros que não.
Por isso acho que a busca do bom psiquiatra é pelo mínimo necessário de medicação. Nem sempre o mínimo necessário será pouco, nem sempre o mínimo necessário é aquela dosagem que faz o paciente se sentir bem – o mínimo necessário é o que garante à pessoa lutar e fazer seu caminho, com dores e alegrias, vitórias e derrotas. É só pensar: eu e você não somos “doentes mentais” pro mundo e mesmo assim sofremos, mesmo assim temos dias bons e dias ruins – e isso é um direito nosso. Paciente que vê recusado seu direito de estar triste e de sofrer acaba perdendo, por tabela, o direito de estar feliz e sorrir de forma autêntica e genuína.
Mas, reforçando: concordo com você, existe sim um jeito bom e criativo de uso dos psicotrópicos. Acho, como você, que existe um exagero e um cabresto ideológico nesses que acreditam que a medicação é um mal a ser combatido, que toda medicação é ruim, que todo psiquiatra é um vilão. O que eu acho que acontece nesses casos é que esse tipo de exagero e totalização simplifica a vida – eu acho que aquele é o inimigo, e esses são os heróis, e fica muito mais fácil viver e pensar e dormir; infelizmente acho que é o mesmo caminho que leva a Auschiwtzes e Sibérias, e é uma pena que tenha tanta adesão entre os nossos “politizados”.
Agora… sobre o SUS e os CAPS e a Reforma Psiquiátrica, eu te recomendo cuidado. Por que? Porque embora seja correto e preciso que são dispositivos oriundos de mobilização popular, esclarecimento e do avanço da democracia no nosso país, são dispositivos que estão aí e que respondem, como tudo, a pessoas e interesses e iniciativas várias. Ou seja: esses dispositivos (artefatos, eles também) são inventados e propostos de forma interessante – o que não impõe nem implica que serão usados de forma interessante. Há CAPS e há SUS reacionário, ressentido, elitista, excludente, totalitário, e precisamos ver isso para saber agir e nos posicionar.
Quanto à Reforma – a Reforma é uma bandeira de luta. Houve conquistas grandes e significativas da Reforma no passado, mas a Reforma nunca se deu por acabada; infelizmente os atores políticos e lobbistas de hoje têm outros interesses (particularmente em São Paulo, a cidade e o estado) e pode-se afirmar sem pestanejar que as conquistas de ontem vêm sendo contestadas e até desfeitas.
Assim, respondendo: não, não acho que o SUS, nem o CAPS estão livres do mau uso da medicação. Isso não significa que estamos perdidos, significa que temos em mãos uma responsabilidade imensa como psicólogos e cidadãos, e significa que temos pela frente muita luta e muita conquista. Isso pode ser bom, e com certeza é preocupante.
Seja como for, o importante é que o nosso movimento seja sempre de elucidação dos dilemas e de posicionamento perante os problemas – é o que nos cabe, e é o que nos resta. E acho que, na medida em que trabalhemos da forma que acreditamos e procuremos as entradas interessantes para fazer o que achamos que tem de ser feito, esse problema “maior”, do poder do nosso país, ainda não terá nos massacrado.
No fundo, o que queria te dizer é: não, não existe lugar “livre” do mau uso e do abuso dos artefatos sociais; não, as conquistas sociais não são templos sagrados e não estão livres dos problemas de nosso tempo. Mas isso não é ruim; isso significa que vivemos em um país dinâmico e em conflito, onde as problemáticas estão postas e nos convocam a um posicionamento. Como você, espero que façamos as escolhas e as coisas certas e que amanhã seja melhor que hoje e pior que depois de amanhã.
Enfim, vamos nos falando – espero que esse segundo e-mail tenha feito sentido e ajudado em algo…
Beijo,
will
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