Poder no trabalho em saúde mental pública

I.    Preâmbulo e avisos:

Este texto foi apresentado em uma mesa em Maceió, em 2009.

Queria agradecer, antes de qualquer coisa, pela ajuda dos colegas Cláudia Beltran do Valle, Rafael Alves Lima e Talita Arruda Tavares por sua inestimável ajuda, atenciosa leitura e inestimável companheirismo, sem os quais não teria chegado a este texto; eventuais falhas e problemas no texto, por outro lado, persistem sob minha responsabilidade.

Optei por formular meu texto como se fosse uma grande divagação. Evidentemente, não o produzi divagando, acredito que seria um desrespeito com quem quer que seja que se disponha a ler. De qualquer forma, acredito que o problema que me propus a abordar responde muito melhor a um questionamento feito em primeira pessoa, sobre uma experiência vivenciada. É claro que poderia pensar o poder e a saúde mental sem falar em primeira pessoa – mas não: preferi falar do meu pequeno, pouco representativo trabalho como psicólogo recém-formado, inserido num CAPS, dispositivo sobre o qual eu só fui aprender já estando lá. Acho que é assim, de desaviso, na pequenez dos atos cotidianos que existe e persiste o poder; achei, pensando nisso, que a forma mais interessante de pensá-lo seria assim, também (ouvi em algum lugar alguém dizer: Se olhar muito diretamente para a dimensão opressiva da sociedade, você não a vê; só se pode vê-la olhando obliquamente, somente se ela permanecer no plano de fundo).

            Aviso que escrevi o que escrevi pensando no que tomo como “práticas em saúde mental pública”; não transporia isso sem críticas pra qualquer contexto de fora da saúde pública, quer seja consultório, psicanálise, projetos, sei lá – falo do contrato de trabalho pelo Estado. O trabalho público em saúde mental tem um compromisso direto com a saúde da sociedade, isto é, a saúde conforme compreendida pelos órgãos de administração e gerência das populações: prefeituras, Estados, governos, secretarias, escritórios, OMS. Quando se trabalha em saúde como autônomo ou como empresa privada, o contrato é o liberal, quem oferece esclarece seu produto e quem contrata paga porque quer; se meu trabalho de saúde não cura, o problema não é meu nem do meu cliente, o problema é que talvez o que eu esteja vendendo seja outra coisa que não a cura. No caso do agente público de saúde, não é bem assim: queria deixar este meu pressuposto claro.

            Queria lembrar também de uma coisa que disse no resumo: deixo-me influenciar grandemente pelo filme Equus, baseado em peça homônima, lançado em 1977. Nele, um psiquiatra, Martin Dysart, compartilha com quem assiste ao filme uma espécie de diário clínico, em que mescla um relato de atendimento (no filme esse relato é dramatizado, como se fosse um flashback que ocupa metade do tempo do filme) com pensamentos a respeito de seu trabalho (representados por um monólogo de Dysart em seu consultório e por cenas de conversações suas com uma amiga, que foi quem o indicou para o atendimento do caso em questão). Seus pensamentos compõem uma espécie de questionamento acerca da função do psiquiatra-terapeuta, levando em consideração que o garoto atendido por ele mostrava uma paixão e uma intensidade obviamente invejadas pelo terapeuta, e levando em consideração que a “doença” do garoto configurava uma mitologia e uma compreensão de mundo que Dysart acreditava serem possivelmente mais saudáveis do que os fornecidos pela suposta sociedade sã.

            Os aspectos que me interessam no filme são, primeiramente, a forma de apresentação: intercalo, eu também, um monólogo com um relato de caso; em segundo, me interessa uma fé ou uma suspensão dos pressupostos na compreensão da conduta do paciente. Evidentemente, Dysart poderia conduzir seu trabalho sem mais inconvenientes e “curar” o garoto – assim como, modéstia à parte, acredito que a equipe do CAPS poderia “curar” o garoto cujo atendimento relato aqui sem os sobressaltos e investimentos que refiro. O que trago à baila neste trabalho é justamente a dimensão em que o poder se efetua: qual sua dimensão mínima e necessária, qual sua dimensão esperada ou média e qual o limite para que aponta, qual a utopia que a move.

II.    Apresentação e montagem do argumento:

O que é o trabalho em saúde mental pública senão poder? O que faz um agente público de saúde mental senão imprimir seu poder sobre um outro, forçar um outro, torcê-lo? Desde Pinel a questão sempre foi o exercício do poder, desde a primeira terapêutica tudo que se pensou dizia respeito à imposição de uma diferença na relação, o agente se sobrepondo, jogando seu peso sobre o outro, o paciente, o doente mental, aquele cuja mente funciona de forma errada.

            Penso numa distopia, no mundo de Winston, num mundo que dizem que nunca existiu mas que, se existiu, o registro que temos é de que foi em 1984. Haviam lá três ministérios: de amor, dedicado à guerra; de informação, dedicado à repressão e à manipulação das informações. E um terceiro, que eu sempre esqueço. Será que é o ministério de saúde? Será que é lá que eles distribuem as insuficientes rações, cuidam da coluna e do bem-estar das pessoas através de suas televisões?

Winston tinha dezoito anos quando foi levado ao CAPS; já tinha uma certa trajetória, uma internação, passagens em pronto-socorros, coisas que nunca foram bem ditas aos agentes. Na entrevista da triagem, pouco disse – foi  a mãe quem contou a história, explicou a situação, relatou os comportamentos aberrantes. Winston dizia só que não estava doente, que o ficavam provocando e que ele não estava ruim, que não estudava e não trabalhava e não saía da cama porque não queria, porque queria ficar em casa. Ouvi dizer que o termo triagem vem da guerra, quando triavam apenas aqueles que valiam o tratamento, descartando os que estavam bons demais para se tratarem, sendo mandados de volta ao front, e os que estavam mal demais para se tratarem, sendo abandonados à própria sorte ou encaminhados de volta aos hospitais de sua terra, se chegassem lá. Winston acabou ficando no grupo dos que valiam o tratamento.

            Acredito que, para um governante ou administrador de populações, o ideal é que um serviço público de saúde jamais veja uma pessoa saudável; afinal, se a pessoa tem condições de saúde, que fique em outro lugar que não num dispositivo de saúde. Vai pra um lugar de saúde quem está doente, que é o objeto do agente de saúde; a função do agente de saúde, afinal de contas, é agir a saúde em quem não a tem, o agente de saúde é um produtor de saúde, um vendedor de saúde. Recebe gente doente de um lado, entrega de volta pra sociedade gente saudável, gente pronta para trabalhar, amar a família, ter filhos, e ficar em paz. “Saúde é a vida no silêncio dos órgãos”, dizia um fisiologista que provavelmente tinha uma vida muito sem graça; saúde é muito mais que um monte de órgãos funcionando sem ruído, afinal de contas; saúde é força pra enfrentar coisas, pra propor coisas novas, pra compor coisas interessantes a partir das coisas que estão aí, saúde é estar no tempo sem medo, ou com medo, mas pensando no medo como uma parte de si, a ser olhada de frente e curtida. Trabalho, família, filhos, paz… isso, quando muito, é o silêncio dos órgãos – só ó começo da conversa.

Não se sabe ao certo quando Winston começou a adoecer; ‘de uma hora pra outra’, diz a mãe, ‘ele largou o emprego, largou a escola, passou a ficar deitado em casa o dia todo’. Um tempo depois ela contaria que, quando estava em casa, na crise, ele implicava com qualquer coisa, achava que o estavam provocando, não deixava mexerem nas coisas, acenderem a luz, nada. Foi necessário todo um estratagema e uma história mentirosa para levá-lo ao atendimento do hospital psiquiátrico onde foi internado; Winston não demonstrava irritação com o relato da mãe – quando questionado sobre o que achava, afirmava que já havia dito o que pensava, que não estava doente e que eles mentiam e enganavam, que o estavam chamando de louco e que aquilo não era verdade. Punham-no no lugar de louco, dizia ele, mas ele não era louco.

Uma vez pensei no que diferencia uma utopia de uma distopia. Acho que existe, antes de mais nada, uma diferença no tom, no matiz – a distopia é uma coisa mais fria e feia, mais azul escuro, e a utopia é uma coisa mais leve, acolhedora e contente, algo mais laranja ou amarelo. Mas na verdade há muitas utopias que são verdadeiros horrores; e distopias que dão uma alegria estranha, de ver uma coisa ruim bem contada. A verdadeira diferença, pra mim, é que a utopia é contada por um anônimo que concorda plenamente com o sistema, que conta de um lugar de “narrador onisciente”: “o Sol nasce em paz em Utopia, e as pessoas acordam felizes pra trabalhar”. Já a distopia precisa de um personagem, não pode ser anônima; ela precisa de um desajustado para se contar, alguém que saia dos eixos e mostre tudo aquilo que é posto em ação silenciosamente para manter o funcionamento do que, de outra forma, passaria perfeitamente por uma utopia: “o Sol nasce em Distopia, e eu percebo que todos acreditam estar na mais plena paz”. Imaginem, por exemplo, Matrix sem Neo: é simplesmente um lugar onde as pessoas trabalham e sofrem e vivem suas vidas e… bom, e só. Imaginem a tal terra que supostamente nunca existiu mas que, se existiu, foi em 1984, sem o tal do Winston: é um lugar médio, onde se vive médio, onde se recebe médio, se ama médio. A distopia é inenarrável sem um desajustado. Talvez todos queiramos uma utopia pra contar, e por isso todos nos voltamos contra os Winstons, sejam eles incompetentes, pobres, doentes, loucos…

Propôs-se que eu recebesse Winston em psicoterapia; afinal, era jovem, gostava de futebol, poderia sair alguma coisa mais amistosa da parte dele. Na verdade, não saiu: ele pouco falava e, quando “instigado” com perguntas gerais, respondia monossilabicamente, dizendo que eu era o doutor e saberia melhor que ele o que ele tinha, porque estava ali, o que poderia ser feito, quais eram as perspectivas ou mesmo onde ele poderia estar senão ali. Demonstrava pouco interesse pela perspectiva de que fizéssemos algo juntos, quer fosse futebol, um passeio, videogame, um lanche em algum lugar próximo ao CAPS; compareceu a dois encontros permeados de silêncio e estranhamento, depois faltou a uma reunião para que sua mãe compareceria e à qual incumbi ele de decidir se iria ou não e, a partir daí, não foi mais às sessões.

Acredito que uma das posições mais difíceis de sustentar, mais sutis e frágeis, seja o simples respeito pelo desajustado; de dentro do sistema, sob os olhos do Big Brother, o desajustado vira quase por um fenômeno intrínseco à percepção um coitado ou sofredor, por um lado, ou um subversor ou um maldito, do outro lado. De alguma forma, o processo que nos torna membros da sociedade age na própria forma de perceber os “intocáveis”, os impuros, os insubmissos, de forma que mesmo os agentes mais devotados e cuidadosos no exercício de sua função invalidam seu objeto de trabalho em sua existência própria. Não se toma o doente em sua dimensão humana – não no trabalho em saúde mental.

Passados cerca de dois meses de tentativas frustradas de contato e sem conseguir integrá-lo a outras formas de atendimento (os agente comunitários não entravam na casa por conta do pit-bull que morava lá, a ONG que atuava na região não conseguia estabelecer contato), com a mãe comparecendo seguidamente ao CAPS pedindo uma solução ao problema, a equipe compreendeu que a única solução era uma entrada na casa (o pit-bull foi levado para passear no momento) e a administração de haloperidol injetável. A idéia era possibilitar um contato para tentar uma aproximação a partir de visitas domiciliares e estimulá-lo a aderir voluntariamente ao tratamento – a partir de um primeiro procedimento involuntário.

Comparecemos à casa eu, dois auxiliares de enfermagem e outra psicóloga do CAPS. Explicamos a proposta e mostramos o remédio. Com quarenta minutos de conversa, a partir do estabelecimento de que a injeção seria ministrada voluntariamente ou involuntariamente, fizemo-lo concordar em não resistir à administração. A sensação era de “menos pior”, de uma vitória inglória ou uma vitória com sensação de derrota.

Na melhor das hipóteses, o que se consegue é um “respeito na doença”, ou seja: respeita-se a pessoa com uma espécie de pena em que não se retira do outro a dignidade. Na verdade, me parece que o limite é mais ou menos esse mesmo: assumir que existe uma verticalidade, que existe um exercício de poder, que existe uma imposição normativa em função muito mais das imposições sociais do que da vontade de oferecer um bem ao outro – isso tudo se assume, para que se torne mais fácil o que quer que seja de relação e de trabalho terapêutico que se estabeleça daí em diante.

Um senhor de 67 anos que faz tratamento no CAPS uma vez disse de mim numa conversa que tínhamos com outros usuários: “o Will é diferente porque ele respeita, porque ele fica aqui com a gente e nos trata olho no olho”. O engraçado é que me senti elogiado injustamente: por mais que tente, eu não consigo tratá-los por igual, não agindo como agente de saúde, não enquanto mantenho minha postura profissional; os lugares são amplamente incompatíveis. Ouço e converso sobre política, futebol ou o que seja, mas nesse momento o lugar “agente de saúde” está em standby; se o tal usuário de 67 anos tivesse uma crise o agente vestiria seu poder e voltaria a campo e aí… bom, adeus, olho no olho.

Não sei nada desse tipo de coisa, mas a própria estruturação gramatical do pensamento em saúde impõe um julgamento valorativo, impõe uma classificação botânica aos comportamentos, condições e ao estado geral da pessoa que é pensada[1]. A relação em sua dimensão ultimamente humana é suspensa – embora possa ser resgatada ou alternada com a relação terapêutica.

A partir a injeção do haloperidol, passamos a ligar para a casa de Winston quase diariamente para saber como estava indo a reação e se havia algum ajuste necessário; passamos a visitá-lo semanalmente para uma conversa, buscando estabelecer um vínculo e, se possível, convidá-lo para um tratamento no CAPS. Winston passou a receber-nos, ele próprio segurava o pit-bull; quanto ao remédio, não gostou do que se passou e reclamava muito dos efeitos, mas gostou muito de um outro remédio prescrito para os efeitos colaterais do haloperidol (clonazepan). Íamos eu e outra psicóloga e passávamos cerca de trinta minutos com ele, perguntando da vida, da rotina, se havia melhora ou piora, o que estava pensando em fazer dali em diante, etc. Ele não nos tratava bem – o que sabíamos que fazia todo o sentido e que era totalmente legítimo – mas ainda assim podíamos perceber que havia para ele algum sentido em nossas visitas, que ele conseguia tirar de nossa ida semanal algo de positivo. Pensamos que era importante para ele receber visitas de “cuidadores” que reconheciam seu sofrimento e toleravam sua raiva, e eu pessoalmente acreditava que ele deveria encontrar naquilo tudo um amparo e um respeito a seu sofrimento e à sua dificuldade em se restabelecer.

Tem um cara que defende o que ele chama de “medicina terapêutica” (Georges Canguilhem). A idéia é que o médico examine o paciente e busque elementos diagnósticos, normal; a partir daí, no entanto, ao invés de prescrever uma terapêutica, o médico explica ao paciente como funciona o estado patológico e em que ele acarreta, mostrando como funcionam as propostas terapêuticas e como elas restabelecem a normalidade, assim como o que se entende por normalidade em cada caso, discutindo com o paciente (o nome já fica estranho nesse contexto) qual seria a melhor terapêutica para seus interesses – o médico vira um clínico e um conhecedor técnico, mas não é o terapeuta: o terapeuta é o cara doente, ou melhor, a ação das alterações na vida do doente, tomadas por escolha do “paciente”. Parte-se, no caso, do pressuposto de que a normalidade é um estado consensual arbitrário, não é saúde; saúde seria um estado em que o vivente (é o termo dele) consegue se relacionar com o meio de forma criativa, com uma adequação não total. Isso porque, se a adequação fosse total, o vivente não conseguiria ou só perderia com alterações no meio, e isso não é saúde, dado que o meio muda a todo o tempo. Saúde é quando a pessoa se vira no meio em que está, mas sempre projeta algo de diferente para si e para o meio, e tem condições de se haver com as mudanças no meio, recorrendo a recursos que disponha.

Acredito que isso tudo seja furado no que diz respeito ao “médico de almas”, ao agente público de saúde de que trato aqui; não por acaso, o cara da medicina terapêutica disse antes de começar a escrever (seu livro mais conhecido no Brasil, “o normal e o patológico”) que só falaria sobre condições físicas, porque sobre psiquiatria e saúde mental aquilo não poderia ser aplicado sem ressalvas. O agente não ganha nada ao se furtar à dimensão normalizante, a essa função eminentemente moralizadora de seu trabalho. Acredito que ganhe mais ao assumir que isso está em causa e pensar as possibilidades que lhe restam a partir daí, à liberdade que lhe resta em sua prática profissional e à liberdade que resta àquele submetido a seu trabalho, a liberdade que ele pode “tolerar”.

Winston não respondia muito a nossas perguntas nessas visitas; na verdade, respondia com o mínimo possível de palavras e não se esforçava em esconder o desconforto que sentia com nossa invasão (o termo visita é amplamente inadequado nesse tipo de contexto). Aos poucos passou a falar que não queria nossas visitas, que preferia que fôssemos embora e não voltássemos mais e que não gostaria de prosseguir o tratamento; assumimos essa colocação – e dissemos isso a ele – como algo positivo por sua sinceridade e abertura, afirmando, no entanto, que era nosso trabalho seguir com as invasões e insistir em sua adesão, por mais que nos desgostasse essa função “chata” – isso fazia parte de nosso trabalho como cuidadores. Com o tempo sentimos que Winston aproveitou nossa sinceridade, passou mesmo a falar mais a partir daí, acredito que em função de encontrar as cartas abertas na relação.

Depois de alguns encontros ele aceitou jogar uma partida de Uno conosco. Foi bem legal, até! Ele só quis jogar uma, mas se despediu de nós com um ar mais leve. Na semana seguinte tivemos notícia de que havia voltado a trabalhar e a sair com os amigos, como que se tornou impossível a sustentação das invasões semanais. Ainda não estabelecemos uma forma satisfatória de contato com ele.

Winston não compareceu para a última injeção de haloperidol. A equipe simplesmente não sabe se o momento atual de Winston é de crise ou de restabelecimento.

III.  À guiza de conclusão ou apresentação do argumento:

O trabalho dos agentes públicos de saúde mental não é bonito; é só necessário. A dimensão moralizante e normativa do trabalho é premente e explícita, bem como o exercício do poder no processo de restabelecimento. Isso não diz que a doença não existe, só diz que o processo de cura é um processo baseado em indicadores arbitrários e socialmente estabelecidos.  Acho que todos saem ganhando quando o poder é assumido e suposto, e o processo de construção da cura é elaborado a partir daí, em conjunto com o vivente.

Sofrer é inerente ao humano; a loucura, creio eu, reside em todos. O que se põe em causa na sujeição mental é o protagonismo do desejo e o processo de alienação: bem alienados, vivemos mediocremente bem, e acho que o mundo em que vivemos é doente e cristalizado o suficiente para que se fie uma vida nesses termos; quando a alienação não se impõe, quando o desejo fala mais alto e a carne sofre, o que se faz necessário é uma arte, frágil e precária arte, de viver uma vida invivível, protagonizar a distopia, em busca daquele ângulo de nosso cubículo que a televisão não capta. Voltando à pergunta que nos fiz no início, sobre o que seria o trabalho em saúde mental pública senão poder: acredito que não haja nada previsto, o exercício do poder é a condição necessária para a efetivação do trabalho – obviamente um poder técnico, poder instrumentado e ideologicamente paramentado; mais que isso, no entanto, o trabalho em saúde mental pública se propõe a acompanhar e tomar parte em um processo de modulação da loucura, de forma a que esta seja inserida e absorvida pela comunidade do paciente. Espero que este processo tome tanto o paciente quanto a comunidade em causa, já que acredito que a sociedade em que vivemos é, ela também, um tanto quanto alienada.

Não penso nisso como argumentos para que não haja saúde mental pública, nem penso nisso como motivação para que agentes de saúde mental pública abandonem sua profissão ou sua motivação; no entanto, penso nisso como crítica, mas numa concepção determinada de crítica. A meu ver, críticas não são argumentos contra uma coisa ou motivos para o abandono de dada coisa; acredito que, quando alguém critica algo, a idéia é a de propor uma crise: criticar é a forma de tratar do que poderia ser chamado de “crisificar”. E o que é uma crise? Para mim (sempre minha opinião) crises são pontos em que as estabilidades são revistas, os pressupostos são suspendidos, os combinados são retomados, para proporcionar um rearranjo, que se espera, obviamente, que seja melhor. Crises no geral são favorecidas por mudanças drásticas no ambiente: um esconderijo é descoberto, uma aliança é desfeita, um contrato termina, um parente morre – crises impostas ou, melhor dizendo, induzidas; há outra possibilidade, que é a que tento defender aqui: uma crise favorecida por uma vontade de mudar, de crescer, de não se estabilizar[2]. Deste ponto de vista, quem critica não é um chato ou um ressentido: quem critica é alguém amplamente desconfortável com um conjunto de combinados, interessado que está em vê-los reordenados, de uma forma potencialmente mais rica. Minhas críticas não se dirigem, portanto, a uma “denúncia” ou derrubada dos agentes de saúde mental pública; minha crítica é uma proposta: que tal pensarmos no poder que nos cabe exercer? Que tal pensarmos numa forma mais potente de pacto com nossos pacientes e com a comunidade que os toma como doentes ou loucos? Que tal tomarmos como utopia uma distopia?

Espero ter favorecido um diálogo. Ponho-me à disposição para críticas, questionamentos e alianças através de meu e-mail pessoal: wilson.franco@usp.br.


[1] Acho que há dois aspectos aqui: por um lado a dimensão botânica, científica e apassivadora da relação psicodiagnóstica; por outro lado, há a dimensão da configuração de uma linguagem própria no tratamento científico proposto à saúde mental, com o que a língua do agente vira outra que não o português.

[2] Em alguma medida as duas coisas são a mesma, a minha crise, que os convido a tomar parte, me foi induzida por algo que presenciei em meu trabalho no CAPS. No entanto, há uma postura de vida em que as crises só se vivem quando são inevitáveis e há posturas em que crises são “bem-recebidas” (na medida do possível) e até cultivadas quando entre-vistas in statu nascendi.

W, 2009

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