Tem raízes, o Brasil? Notas de leitura a “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda

O livro não é grande – na edição que usei, publicada em 1976 pela José Olympio Editora, o texto principal ocupa menos de 140 páginas (vindo acompanhado de um prefácio escrito por Antonio Cândido em 1967, que inclui umas dez páginas à encadernação).
A publicação original é de 1936, de forma que, curiosamente, tanto o texto de Sérgio Buarque como o prefácio de Antonio Cândido foram escritos nos primeiros anos de regimes de exceção (no caso de Holanda penso no golpe varguista de 1932, no caso de Cândido, claro, no golpe civil-militar de 1964). É notável no texto de Holanda, por sinal, o empenho em criticar as ideologias positivista (presente no ideário das Forças Armadas, mas também em boa parte dos pensadores do Estado nacional e decisivas no período de passagem do Império à Primeira República) e integralista (o texto conclui, por sinal, com uma crítica contundente ao papel da ideologia fascista subjacente ao movimento integralista – não exatamente, como hoje poderíamos supor, por sua vinculação ao fascismo per se, mas pelo fato de ser uma vinculação “de fachada”, destituída da marca briosa e comprometida com a transformação profunda da sociedade; ou seja: a crítica é porque os integralistas não são fascistas “de verdade” ou “o suficiente”).
A expressão “homem cordial”, principal responsável pelas referências ao livro atualmente, é mobilizada apenas a partir do capítulo V, já na reta final do livro; o tal capítulo V é intitulado justamente “O homem cordial”, mas a expressão em si só surge, mesmo neste caso, mais adiante no decorrer do capítulo – bastante curto, por sinal; Holanda atribui a expressão a “Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes” (p. 106) e a emprega como ponto de congregação de diversas caracteristicas que ele havia apontado em relação às ditas “raízes do Brasil”. O “homem cordial”, pode-se dizer, é flor e fruto do Brasil, postas as raízes que o alimentam e sustentam. Na maior parte das vezes em que me deparei com referências ao livro, foi por conta dessa noção de “homem cordial”, que é inclusive atribuída erroneamente a Holanda (aprendi isso lendo o livro); o contexto das referências é, em geral, crítico e cético, alegando que não faz sentido tomar o brasileiro como “cordial” se considerarmos a presença marcante da violência e da truculência no dia a dia e nos grandes acontecimentos da história nacional. Essa crítica, – outra coisa que aprendi lendo o livro (e retomando a consideração a esse mesmo respeito pela Lilia Scharcz em “Brasil: uma biografia”) – não procede; e não procede porque a concepção de “homem cordial” não é simplesmente a de um “homem afável” ou de alguém avesso à truculência e à violência, não é disso que se trata. “Cordial”, nos dizeres de Holanda, é o homem afeito ao personalismo, homem que age guiado por seu coração (seu “cor”) e não por sua razão livre e analítica. O homem cordial é um modo – ou uma degradação, poder-se-ia intuit que esta é a posição de Holanda – do homem racional.
De qualquer forma, essa ideia defendida por Holanda de que o brasileiro é eminentemente “cordial” depende intimamente das “raízes” a que se refere o título do livro, porque, como disse, o “homem cordial” é flor e fruto dessas raízes, e não se pode entender o argumento do livro sem compreender como Holanda constrói essa articulação. Então, para entender o argumento do livro, precisamos entender em que consistem e como funcionam as tais raízes.
Comecemos recuperando que a expressão “raízes do Brasil” aparece no texto uma única vez (salvo engano de minha parte), nas últimas páginas do livro, em meio a uma citação bastante curiosa do estadunidense Herbert Smith. Cito-a na íntegra, ainda que a referência à raiz surja apenas no final e que Holanda interponha à citação comentários de sua própria autoria: “de uma revolução é talvez o que precisa a América do Sul. Não de uma revolução horizontal, simples remoinho de contendas políticas, que servem para atropelar algumas centenas ou milhares de pessoas menos afortunadas. O mundo está farto de tais movimentos. O ideal seria uma boa e honesta revolução, uma revolução vertical e que trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes. […] Espero que, quando vier, venha placidamente e tenha como remate a amalgamação, não o expurgo, das camadas superiores; camadas que, com todas as suas faltas e os seus defeitos, ainda contam com homens de bem. Lembrai-vos de que os brasileiros estão hoje expiando os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros. A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes [aí, as raízes]. Se as classes cultas se acham isoladas do resto da nação, não é por culpa sua, é por sua desventura. Não ouso afirmar que, como classe, os operários e tendeiros sejam superiores aos cavaleiros e aos grandes negociantes. A verdade é que são ignorantes, sujos e grosseiros; nada mais evidente para qualquer estrangeiro que os visite. Mas o trabalho dá-lhes boa têmpera, e a pobreza defende-os, de algum modo, contra os maus costumes. Fisicamente, não há dúvida que são melhores do que a classe mais elevada, e mentalmente também o seriam se lhes fossem favoráveis as oportunidades” (Herbert Smith apud Holanda, 135-136).
Pois bem, deixemos de lado as curiosas considerações de Smith – lembrando apenas que elas, curiosas como são, foram retiradas integralmente de Holanda (que não refere a fonte da citação, por sinal), com toda essa fantasia de uma revolução plácida que não expurgue as classes superiores e que envolva uma espécie de feliz encontro de dominadores e dominados. Deixemos, como disse, isso tudo de lado, e voltemos à ideia smithiana de que “a sociedade está mal formada nesta terra, desde suas raízes”. Porque isso efetivamente dá boa notícia do tom da peça: Holanda é bastante crítico ao descrever as tais raízes do Brasil, ele não tem grande orgulho nem vê grande vantagem na forma como o Brasil está enraizado (um representante notável da famigerada “síndrome de vira-lata” que acomete hostes de brasileiros, quiçá).
Que raízes são essas? Bom, elas vêm, basicamente, de dois pontos cruciais: a colonização portuguesa (que parece mesmo a “banda podre” da Europa Ibérica sob a pena de Holanda) e a forma como o senhorio das fazendas e plantations se acomodou à nossa terra pátria.
Nos dois primeiros capítulos, por sinal, o livro tenta dar notícia da forma e da medida em que somos frutos da colonização portuguesa. Portugal, diz Holanda, é uma das “zonas fronteiriças” da Europa, uma das pontas em que a Europa se lança rumo ao que parece, aos olhos dele, o resto do mundo; isso implica em dizer, claro, que não temos aqui a “fina flor” da Europa, mas sim a flor sofrida daqueles galhos mais aventureiros e distantes, aqueles mais submetidos a vento e sol inclementes. Então qualquer comparação de nossa civilização e cultura com aquela da Europa envolve essa diferença, esse fosso – não somos, nunca fomos, nunca seremos europeus “de verdade”.
E isso porque, para dizê-lo com todas as letras, os próprios portugueses não são lá grande extirpe europeia, aos olhos de nosso ilustre autor. Portugal, estabelecida enquanto nação precocemente no horizonte europeu (lá pelos idos do século XII, informa-nos o mesmo Holanda), parece ter se tornado por força dessa precocidade uma nação um tanto indolente – pouco afeita ao labor intenso, à luta pela transformação, ao arrojo etc. Daí, em grande medida, termos uma civilidade composta ao sabor do estilo “semeador” apontado por Holanda num capítulo central do texto – não aquele do “homem cordial”, mas o anterior, o capítulo quarto, intitulado “O semeador e o ladrilhador” (contando quarenta páginas, é o mais longo do livro, “de parzinho” com o capítulo II, capítulo este que apresenta outro par de opostos, “Trabalho e aventura”). Pois bem, neste longo capítulo IV Holanda compara a civilidade imposta na América espanhola, toda composta por uma domesticação da terra, do relevo e da própria operação da aventura humana naquele canto do mundo (o estilo “ladrilhador” de se impor sobre a natureza selvagem) à civilidade adotada em nossa América portuguesa – uma acomodação econômica, pouco enérgica e, em geral, pouco engajada, interessada sobretudo em auferir máxima vantagem do mínimo esforço. Por isso, argumenta Holanda, teríamos estado o mais próximos possível do litoral, compondo esparsas e pouco trabalhadas aldeias, dispostos em geral como função e apêndice das plantations que funcionavam em quase tudo como pequenas Repúblicas independentes, cada uma vivendo do que produzia e pagando sem grande alvoroço os dividendos devidos à Metrópole. Então somos obra de semeadura indolente, e não de ladrilhadores devotados; somos fruto de aventura, e não de trabalho; somos devotados aos latifúndios de monocultura e à otimização do lucro ao custo do mínimo esforço, e não tivemos sombra nem perspectiva de civilização, urbanização, modernização da parte de nossos “descobridores”. Estas, pois, as raízes do Brasil.
Como bem aponta Antonio Cândido em seu prefácio, Holanda parece se apoiar na proposição de tipos puros à moda weberiana – assim, segundo levantamento de Candido, “trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros” (p.XV).
Acontece que Cândido entende que Holanda, ao invés de compor tipologias plurais, como o faria Weber, recorre a pares, “para tratá-los de maneira dinâmica, ressaltando principalmente a sua interação no processo histórico. O que haveria de esquemático na proposição de pares mutuamente exclusivos se tempera, desta forma, por uma visão mais compreensiva, tomada em parte a posições de tipo hegeliano[…]” (p. XIV). Pinça inclusive, nessa passagem mesma, um trecho em que Holanda se refere a negação num esquema antinômico tipicamente hegeliano.
Sinceramente, ainda que tenha lido esse trecho pinçado por Cândido e mais um ou dois com o mesmo espírito, não consigo ver como isso “tempera” ou dinamiza os pares de opostos. Pelo contrário: em minha leitura entendi que Holanda vê as raízes do Brasil imersas na “banda podre” dos pares de opostos: a Europa fronteiriça, os colonizadores aventureiros e pouco laboriosos, a aversão à cidade e à administração burocrática moderna, a urbanização “semeada” e apenas preguiçosamente civilizadora, a moral e a ética frouxas e as paixões e apetites grassantes, a revolução de má vontade, a República inconsciente, a democracia de faz-de-conta. Ainda assim, claro, não se trata de obra fatalista – inclusive porque Holanda tira um sarro danado do “fatalismo” dos positivistas, de forma que seria um tanto constrangedor se ele mesmo se portasse em ares de proclamador de futuros. Mas bem, as perspectivas de mudança acenadas no final do livro dependeriam de um arregaçar de mangas que ele não teria visto até então (e ficamos um tanto confusos quanto à datação deste “até então”, se considerarmos que a edição de 1976 que li é supostamente uma reedição da terceira, de 1955, mas a inconsciência do devir ominoso do fascismo europeu só pode indicar que a revisão foi apenas superficial – então ficamos com um leque de quarenta anos entre 1936 e 1976 para aterrisar a data do “até então”). Seja como for, se tivéssemos que ser tão claros e concisos quanto possível: não parece haver grande espaço para hegelianismo, antinomias dinâmicas ou Aufhebung no horizonte, e as tipologias de extração weberianas acabam, sim, se acomodando em “bons e maus” – tendo os brasileiros sendo agraciados com o desastroso azar de raízes más em todos os sentidos analisados.

A mim, evidentemente, interessa pôr sob suspeita esse tipo de análise – não para “defender” o Brasil, mas porque a ideia de “raízes” que nos condenam ao atraso não me interessam. A própria ideia de raízes, em meu entendimento, pode e deve ser revista, desconstruída ou, seguindo Bhabha, analisada de acordo com hibridações e rizomáticas que nos livrem do eurocentrismo. Cabe notar, por sinal, que a análise de Holanda parece firmemente enraizada (se quisermos insistir nas raízes) em uma perspectiva “weberiana” daquele estilo que “valoriza” aqueles tipos que Weber sinaliza como sendo os mais bem acabados em termos de uma análise da sociologia da Europa de seu tempo (a ética protestante em sua relação ao capitalismo, o poder de extração administrativo-burocrática etc). De forma que – com toda a maldade e a arrogância que eu poderia me permitir em um comentário preliminar, comentando um clássico e imerso em um campo disciplinar que não domino – as “raízes do Brasil” dissecadas aqui são bastante dependentes das “raízes da Europa” a partir de onde o autor lança as luzes de sua razão. De toda forma, o principal me parece a volta suplementar (e decisiva) neste parafuso: não a recusa do eurocentrismo que nos lançaria em primitivismos, nativismos e/ou anti-europeísmos, mas sim a insistência no valor que as fronteiras têm, e na busca por compreensões do Brasil que não cristalizem raízes ou fatos ou fados submetidas a racionalidades estabelecidas alhures. Que uma análise constele conceitologias e que as conceitologias mobilizem campos de pressupostos, estáveis se quisermos que tenham um pingo de valor analítico, vá lá; mas que isso não nos reduza, prenda ou aliene – que dancemos nossos fados à nossa moda, fados tornados bossa, tornados samba, tornados funk.

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