Contra a Nota Técnica “Nova Saúde Mental”

No dia 4 de fevereiro de 2019 o governo de Bolsonaro publicou a Nota Técnica no. 11/2019, conhecida como “Nova saúde mental”. O documento vem sendo criticado por diversos setores, sob diversos ângulos – o Conselho Federal de Psicologia, por exemplo, publicou um repúdio à Nota. Escrevo este texto para expor minha avaliação acerca da questão, por achar pertinente e necessário que nos posicionemos e porque tenho achado as críticas e repúdio menos convincentes do que gostaria.
 
Tenho claro que a Nota Técnica é um retrocesso e uma iniciativa ruim para o campo das políticas públicas em saúde mental no Brasil. A Nota agrega diversas orientações e medidas administrativas que considero ineficientes e inadequadas, que prejudicarão a estrutura de serviços existente, prejudicarão a população atendida, bem como o estado e perspectivas do campo perante a sociedade civil em geral.
Entendo que a Nota Técnica só foi emitida porque beneficia alguns setores da sociedade, particularmente o lobby médico em sua face mais conservadora e autoritária, as empresas neopentecostais; a vantagem auferida por esses setores é injusta e onerosa para a sociedade. Também entendo que a Nota Técnica só é possível porque se ancora em preconceitos e concepções erradas acerca das políticas e cuidados em saúde mental; nessa medida a Nota Técnica é ideologicamente reacionária e estimula posturas preconceituosas e discriminatórias.
 
Entre os pontos em que a Nota me parece mal dirigida incluo:
1. sucateamento e esvaziamento da política de Saúde Mental vigente;
2. instituição sorrateira de uma nova lógica subjacente ao campo das políticas públicas em saúde mental – abandonando o modelo preconizado na legislação e implantando o modelo “ambulatorial-especialista” preconizado pela ABP há anos;
3. desfinanciamento e desprestígio dos serviços territoriais no âmbito da Estratégia pública de saúde mental;
4. encampamento da “guerra às drogas”, assunção do modelo de atenção ao uso problemático de álcool e drogas pautado pela abstinência e ataque ao modelo de redução de danos;
5. uso ideológico da adoção da estratégia de tratamento “eletrochoque” (ECT);
6. interrupção da redução progressiva de leitos em hospital psiquiátrico, aumento do tarifário previsto para práticas de internação e incentivo à retomada de implantação de Hospitais Psiquiátricos e do aumento de leitos nos Hospitais Psiquiátricos já existentes.
Há outros, mas me parecem menos graves e mais técnicos, deixo-os para as mesas de bar e para os debates em fóruns públicos especializados.
 
Detalho, a seguir, os pontos que elenquei acima:
1 e 2. esvaziamento da política e adesão do modelo “especialista” da ABP: a Nota Técnica afirma estar submetida ao texto da lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), mas faz isso apenas porque a substituição da Lei só seria possível através de proposição de novo texto-lei; na prática, a Nota Técnica claramente se opõe à Lei, conflita e é incompatível com ela – o que significa, na prática, que a Nota é contra a Lei. Mais especificamente, ela rompe com o modelo vigente e adota o modelo apresentado desde o início dos anos 2000 pela Associação Brasileira de Psiquiatria – que sempre se opôs à Reforma Psiquiátrica; a Associação publicou algumas vezes um desenho estrutural para as políticas públicas em saúde mental que é basicamente esse que está sendo avançado: os Hospitais Psiquiátricos assumindo lugar de referência, os serviços ambulatoriais de especialidade assumindo a referência para a “média complexidade”, CAPS e demais serviços substitutivos passando a ser elementos secundários e sem função estratégica progressiva.
A Nota Técnica consolida esses pontos, além de promover as Comunidades Terapêuticas e a internação de menores (pontos em que se alia aos setores conservadores). É evidente, além disso, que o incentivo evidente aos programas de internação e aos serviços ambulatoriais redesenha o fluxo de investimentos (já que não haverá suplementação da verba destinada para atender a isso) – o que significa, como disse no ponto 3, que haverá desfinanciamento progressivo dos CAPS, Hospitais-Dia e demais serviços atacados pela Nota.
A despeito de todo o furdúncio propalado em torno da defesa e estímulo à adesão de ECT (“eletrochoque”) nos tratamentos, o ponto parece ser mais retórico e político do que estratégico. Tecnicamente há uma disputa de poder importante em jogo: ECT só pode ser praticado em estabelecimentos hospitalares de alta complexidade e com equipe treinada, o que mina na prática as equipes de base territorial e fortalece as equipes de base ambulatorial-especialista. Para além disso, no entanto, o ECT dispersa a luta, já que deflagra uma onda de latidos e balidos raivosos direcionados única e exclusivamente ao estereótipo associado à prática. O que quero dizer é que os opositores da Nota Técnica se perdem criticando o “eletrochoque” e deixam de abordar frontalmente a questão estratégica mais ampla – entendo, portanto, que o enfrentamento dos riscos associados ao mau uso do ECT é dispersiva e politicamente ruim.
[Claro que existe uso errado do ECT como instrumento de punição e tortura, e esse uso deve ser combatido. Mas a oposição ferrenha à aquisição de equipamento é uma tática ruim, porque parece simplista, é estereotipada e não endereça as questões principais].
A adesão e defesa do ECT como parte do programa de tratamento, de toda forma, é o representante “deslocado” dos contornos claramente conservadores, corporativistas e “anti-Reforma” da Nota Técnica e dessa gestão como um todo. O ECT é a manifestação física, material do espírito das propostas, que visam a um regime centralizado, hierarquizado, medicocêntrico, avesso à lógica do território e afeito à lógica do policiamento. Daí a ênfase na prevenção moralizante, em detrimento da promoção de saúde e do fortalecimento dos vínculos com a Estratégia de Saúde da Família (ESF); daí o abandono das políticas de redução de danos em benefício do modelo da abstinência; daí a declaração de guerra às drogas.
 
No fim das contas, e acima de tudo, é imporante frisar que a Nota Técnica é tecnicamente ruim. A Estratégia preconizada pela legislação sintonizada com o espírito da Reforma Psiquiátrica é mais razoável, mais efetiva e mais eficiente. Ela não estava “dando certo”, a bem da verdade – mas isso é porque vinha sendo sabotada há anos (desde a segunda gestão Dilma, no mínimo); tecnicamente, no entanto, ela é clara e evidentemente a melhor estratégia para um país com as características do Brasil. Ela esteve sendo frontalmente combatida porque ela tem conotações progressistas e democráticas, o que soa politicamente desagradável aos “apolíticos” de direita que comandam o país e o Conselho; ela também é descentralizada, territorial e criativa, e por isso desagrada os caciques, os autoritaristas, os corporativistas e os lobbies de planos de saúde; mas praticamente, enquanto legislação e política para regular as políticas e para promover a saúde mental da população, ela era clara e evidentemente a melhor estratégia, a estratégia correta. A estratégia preconizada por essa Nota Técnica é menos eficiente, é mais cara e gera tensão e mal-estar social ao estimular preconceitos e discriminações.
Entendo, como já disse, que ela está sendo avançada por ser conveniente a alguns lobbies, e por ela ser ideologicamente conveniente para o atual governo. Que fique claro: a adoção dessas estratégias aumentará o custo, aumentará a incidência de transtornos e do sofrimento que eles geram, gerará perdas sociais e afetará negativamente as condições de saúde mental no país. [Isso não deve repercutir nos rankings que avaliam esses parâmetros porque o sistema de contabilização deve mudar para “acomodar” essas perdas].
 
Essas são minhas considerações acerca da Nota Técnica. Ferreira Gullar, um dos tantos a criticar a Reforma Psiquiátrica, dizia que a Lei de 2001 era “uma lei errada”. É simples: ele estava errado. Era a lei certa – ela não foi implementada da forma certa, e agora está sendo oficialmente declarada letra morta (com o cinismo típico desse governo), e isso é a coisa errada a se fazer.
A Nota Técnica é uma ação errada. Pra saúde mental da população, pros serviços, pro estado das políticas de saúde mental no imaginário civil, é uma ação errada.
Ela está sendo avançada para fins escusos, em benefício de alguns poucos lobbies e corporações. Ela vai gerar lucro para os privilegiados, e vai aumentar a desigualdade, a injustiça e a desatenção. Vai fomentar preconceitos, aprofundar abismos e gerar retrocessos.
Essa Nota Técnica é um erro. Mas é coerente: é apenas mais um dentre tantos erros que o atual governo vem infligindo sobre a população, e particularmente sobre as camadas vulneráveis dela.
 
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