Numa música já antiga BNegão dizia que “se você não faz parte da solução, então faz parte do problema”.
No contexto do Planet Hemp, banda que executou a música de onde retirei o verso de BNegão, a luta era clara: a criminalização da maconha como plataforma de base de um sistema opressor excludente, encarceramento e empauperamento da classe trabalhadora, regime de cumplicidade perversa entre o Estado e o crime organizado etc. E a ideia do “engajamento compulsório” era que todo cidadão que se importasse tinha que tomar parte ativa na luta pela resolução do problema – a legalização da droga era o elemento central na imagem da banda, mas a incidência da militância dizia respeito ao campo amplo que elenquei de forma sumária na frase anterior.
Mas a lógica do “se não faz parte da solução, então faz parte do problema” é muito mais difundida do que isso, obviamente: praticamente todo campo de luta organizada confronta “a massa” com injunções desse tipo; a ideia de que não se engajar na luta pela solução de um problema é ser cúmplice com os algozes é praticamente um lugar comum no campo da militância, é o instrumento mais utilizado na mobilização e sensibilização.
Há um grande e evidente problema com esse tipo de expediente, que é sua cumplicidade tácita com o regime de culpabilidade judaico-cristã: você tem que fazer parte, porque se você não tomar parte você terá que sentir culpa. O ponto problemático aqui é que o sujeito, no fim das contas, se engaja por culpa – é a culpa que o move. Dando um passo à frente, no entanto, é importante reconhecer que a maior parte dos movimentos coletivos não é tão rigorosa quanto à pureza nas motivações daqueles que se engajam, e se é culpa que move o sujeito, sem problema (contanto que ele siga fazendo o que o coletivo espera dele). Então a questão da culpa judaico-cristã não é um impeditivo ou um problema de primeira ordem no contexto dos coletivos e militâncias – é um problema pra gente desocupada como eu, e pra um outro teórico social.
Nada disso é novo, e imagino que a maior parte das pessoas já tenha pensado nisso. O motivo de estar levantando esse ponto aqui é porque ele toca com outros dois pontos que me parecem cruciais na conjuntura contemporânea, e em relação a essa articulação acho que ainda precisamos pensar um pouco melhor.
Um desses pontos é a relação desse tipo de regime de injunção à mobilização no contexto das redes sociais e da comunicação de massa coaptada pelo cartel de empresas gerenciando a internet S/A (Face, Instagram, Twitter etc). A questão aqui é que os coletivos e movimentos organizados provavelmente terão dificuldade em mobilizar esse tipo de injunção à mobilização (pautada pelo imperativo da participação aliada ao espírito de culpabilidade judaico-cristã) no contexto das grandes redes: entendo que o mecanismo simplesmente não funciona tão bem. Tente visualizar a “bolha de influência” de movimentos radicais: ela fica necessariamente restrita à esfera de influência que já estava aderida ao regime de culpabilidade para início de conversa, fazendo com que o movimento perca ímpeto. A exceção notável aqui será, como já deve estar evidente, o radicalismo pautado de partida pelo ressentimento: o radicalismo de direita. Nesse caso o regime de culpabilidade funciona com perfeição, e o fato de a bolha ser rigidamente auto-contida se articula de forma paradoxal, mas altamente eficiente, com seu crescimento constante. O fato de o ressentimento ser um afeto socialmente disseminado em sociedades desiguais e violentas como a nossa só potencializa esse processo (que aconteceria mesmo com graus bem menores de desigualdade e violência, mobilizado “simplesmente” pela dinâmica ressentida que pauta toda democracia capitalista). O desafio, nesse contexto, é encontrar regimes de engajamento que driblem o clima saturado de mediocridade (no sentido não judicativo, literal, restritivo) das redes sociais: achar formas de injunção à mobilização que escapem à retórica do bom senso e da lacração cínica ou à moda da ladainha. A maioria das disputas nas redes redundam em exposições sistemáticas e retoricamente insossas, que exibem dados e sofismas na melhor moda do profissional técnico de classe média; na ágora que são as redes sociais, por sinal, a imensa maioria se identifica ao médio técnico, e esse é um dos elementos que esvazia as lutas.
Se pensarmos nesse meu texto, por exemplo, enquanto plataforma retórica: eu me situo, ao falar, claramente como um político progressista diletante, argumentando como se tivéssemos em uma reunião “estratégica”. A maioria dos textos que encontro nas redes funciona assim, como “formação de elite intelectual” ou como “alinhamento de cúpula”. Isso, obviamente, esvazia o poder de comoção e engajamento, e sequestra essa plataforma da culpabilização ressentida (à la BNegão) no processo.
O segundo ponto crítico ligado à transformação nos meios de engajamento coletivo passa pela questão das identidades e identitarismos, e está ligado a um elemento sócio-afetivo “irmão gêmeo” do ressentimento e má consciência judaico-cristã: penso aqui no “homem universal” como agente de enunciação. A questão que tenho em mente aqui é que as plataformas identitárias articuladas às lutas das minorias – nos contextos de gênero e raça, particularmente – dificilmente se desvencilham da oposição polar à figura do homem universal, que nesse contexto segue, por default, sendo referente e atuante. O ponto não é a assunção de um lugar de fala, por si só: a questão é a assunção tácita de que este lugar de fala é localizado relativamente a um universal que continua lá.
Esse ponto, obviamente, é de difícil encaminhamento, já que, para todos os efeitos, esse homem universal efetivamente encontra meios de se manter lá, enquanto referente universal. E obviamente não há como defender a necessidade de reorganização desse campo como tarefa e pauta para os agentes mobilizados que representam essas minorias – qualquer colocação com esse espírito seria maldosa e injusta, pura e simplesmente. Mas o ponto me parece colocado – se o enfrentamento e encaminhamento é difícil, isso justifica ainda mais a tomada de consciência crítica relativamente a ele (bons problemas, no fim das contas, são apenas aqueles que não vêm com resposta embutida – são os únicos que efetivamente mobilizam o pensamento e abrem espaço para o novo).
Se trago todos esses pontos à baila, e se eles têm me ocupado particularmente, é porque tenho percebido que eles me convocam, e é esse o ponto principal a que queria chegar aqui. Tenho percebido o quanto meus posicionamentos presumem um tipo de consciência crítico-reflexiva que é, estruturalmente, de corte universalista, liberalista, vinculada a uma democracia europeia cuja violência tácita já conhecemos o suficiente hoje em dia. E tenho percebido que não estou sozinho nisso: a maioria dos “textões” e análises críticas que tenho lido trabalham sob o pressuposto da ágora ateniense, na acepção mais caricatural que a história imprimiu ao fenômeno: os homens brancos (os poderosos atenienses na verdade não eram brancos, essa imagem que temos é nada mais que um mito racista promovido pelos renascentistas e iluministas – mas isso fica para outro dia), os homens brancos, nativos e detentores de terras se reúnem para discutir enquanto representantes do povo, do demos; o poder deles representa o povo.
Só que eles eram minoria.
Sim, o protótipo democrático era excludente e elitista.
Isso não quer dizer que é um mau modelo – só quer dizer que temos bons problemas pela frente.
E eu? Eu disse que cheguei a essas considerações por estar pessoalmente engajados nelas: pois bem, onde eu entro pessoalmente nisso? Simples: tenho percebido que o engajamento que me é urgente, hoje, é aquele em que eu faria as contas com minha condição de representante de homem universal, encarasse essa condição e não fizesse disso plataforma culpada (judaico-cristã) de reforço narcísico de minha pretensa superioridade. Esse é meu desafio intelectual, enquanto cidadão, hoje. Evitar o que Zizek chama de “mais-valia identitária” ligada à reafirmação da minha culpa enquanto branco-elite, evitar a hipocrisia e o cinismo de um falseamento identitário, encarar a questão enquanto questão.
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Tive um estranhamento quando, na entrevista que deu ao Roda Viva enquanto presidenciável, em 2018, Guilherme Boulos nomeou os povos negros e indígenas brasileiros como “povos originários”. Por que meu estranhamento? Porque de um ponto de vista histórico-cronológico entendo que os negros são tão “originários” no Brasil quanto os brancos – e mesmo a ideia de substituir a expressão “indígenas”, cujas limitações e problemas entendo, pela expressão “originários”, me parece naturalizar e substancializar uma concepção de origem que vejo como problemática (o que chamamos genericamente de “indígenas” é um conjunto heterogêneo de culturas e povos cuja pluralidade não deveríamos poder suprimir, mas chama-los de “originários” e adotar o plural não me parece resolver o problema).
Tenho pensado, desde então, na pertinência de adotar a estratégia inversa: considerar os brancos como os “índios do Cáucaso”. A ideia aqui é que a palavra “indígena” pode ser entendida como significando genericamente “povo originário de determinado país, região ou localidade”, referindo-se implicitamente à ideia de que “era quem estava lá antes de chegarem os invasores”. Se a ideia é complicada, é justamente porque ela pressupõe um “tempo originário” e, bem, esse tipo de mito de origem pode gerar muito mais (maus) problemas do que soluções.
Acontece – e é aqui que quero chegar – que toda essa confusão em torno dos “originários” só acontece porque há um povo tomado como universal, e temos estado trabalhando para superar esse mito do “homem universal”; o povo em questão é o branco europeu, e o mito do homem universal se articula fortemente a ele. Quando Boulos se refere aos “povos originários” ele está tentando manter viva a questão de que “índios” não é um povo “que vivia aqui antigamente”, está carregando positivamente a relação desses povos com o território nacional etc.; mas nesse meio-tempo acaba retomando como eixo de referência o branco europeu colonizador – por ser o contraponto, o ponto de tensão. Onde quero chegar, então, é que um enfrentamento sistemático acerca do lugar de fala dos índios do Cáucaso pode ajudar a fazer avançar esse nó nos tropos enunciativos com que temos estado nos batendo nos últimos tempos.