Café mineiro – coisa fina. Foi uma das fotos que pesou decisivamente para que ele optasse por essa casinha: o pedestal, o filtro de pano, a janela com os batentes de madeira ao fundo, as paredes com aquele amarelo-palha cheio de marcas de pincelada, e a fumaça do café claramente discernível; foto fantástica, remetendo claramente a um clima idílico, a uma certa calma, à tranquilidade das coisas mesmas.
Ele fica agora pensando na equipe de fotógrafos de comida instalada na casinha; pensa naquela aparelhagem toda que regula a luminosidade do ambiente: aqueles holofotes como cílios gigantes, aqueles guarda-chuvas prateados, dois ou três auxiliares com pranchetas olhando por ângulos variados, um deles segurando o bule com água fervente, o fotógrafo responsável orientando, montando a cena. Pensa naquela aparelhagem toda tomando o ambiente de chão batido, os caras reclamando dos pernilongos e da estrada de má qualidade, o fotógrafo responsável concentrado, responsavelmente sério, compenetrado, ajustando os detalhes.
Olha pela janela, contempla a mata, o dia que nasce; pássaros cantando, bois (ou vacas; ou os dois) mugindo ao longe, em alguma fazenda nas redondezas.
Talvez devesse sair para uma caminhada pela manhã, conhecer a região. Talvez ajude.
Senta à mesa, certamente algum tipo de madeira específico, evoca coisas importantes sobre a região, talvez sobre a história da casa ou do país em geral. “Jacarandá da Bahia”, será? Será que só dá Jacarandá da Bahia na Bahia?
Peroba Rosa?
“Pau-bosta” – certamente não é pau-bosta, esse é típico de cidades, construções, madeira de tapume.
Torrada, geléia, manteiga, café.
A ideia é que viessem ideias. Ou que descansasse. Talvez esteja descansando. Será que ele está descansando?
“Se você teve que pensar se está ou não, acho que é porque não está”. Ela diria isso, com certeza. Mas será?
Será que ela sabia mais sobre ele do que ele mesmo?
“Se você está perguntando, deve ser porque sim, não é?”.
Não – ele acha que não.
Acha que acha que não, ao menos.
Torrada, geleia, café. Ele rumina. Vacas e/ou bois mugem ao longe.
Não é possível que essa reserva tenha sido má ideia, não pode ser. Até porque, assim, não que a questão seja essa, mas, enfim… dois mil e cem reais pelo feriado, vê bem: era bom que servisse de alguma coisa.
Tenta se imaginar no apartamento, sentado à mesa balcão, o espresso machiatto longo, o pão com manteiga (sem ir à chapa por preguiça), o celular.
O celular.
O celular.
(Não tem mesmo rede no fim de mundo onde decidiu passar o feriado – que bom, assim quem sabe ele desapega um pouco).
À mesa balcão, meia bunda porcamente acomodada naquela cadeira alta horrorosamente desconfortável em que ele fia longas horas, o café machiatto bom nossa que café maravilhoso, como todo santo dia esse café é incrível uau, fotos e mais fotos do Beto lá do colégio na praia com um pessoal qualquer, provavelmente da firma dele, que ele faz mesmo da vida hoje em dia?, o Beto provavelmente em alguma praia paradisíaca, postando foto de porção de camarão e caipirinhas ao fundo, a caipirinha provavelmente cheia de areia, a foto maquiando o tamanho exíguo da mesinha onde as coisas estariam amontoadas o dia todo exceto no momento das fotos. Alguém provavelmente teria ido ao teatro. Alguém teria postado foto de pijama e cabelo desarrumado com o boy ou a mina, citação de música pop etc etc.
Ele rumina. Ao longe, vacas e/ou bois mugem.
Ele está mesmo precisando desligar um pouco das coisas. Ele não é mais o mesmo.
Quem ele era, mesmo? Ele era mais falante, espontâneo, falava asneiras, mas sempre escutava, prestava atenção, fazia umas perguntas estranhas. De uns tempos pra cá parecia apagado, parecia obcecado pelas coisas que via naquele celular.
Será que é ruim ele usar tanto o celular?
Ele toma um último gole do café, já frio (ele pôs mais café do que deveria ter posto; idealmente ele deveria ter despejado a água em uma temperatura levemente menor – mas ele teria de ter usado mais de um pano de prato, ou uma luva térmica, que obviamente ele teria que ter trazido, e ele jamais teria trazido uma luva termina, para segurar o bule, já que não poder ter tido a pressa que teve para despejar).
Ele não sabe – é possível que nem seja verdade – mas bois e vacas criados em extensão passam a maior parte de seu dia ruminando.
Ele veste a bermuda, a camiseta dry-fit, as sandálias; passa protetor solar no rosto, braços, pernas; separa o reader (em que preparou para leitura “Factfulness”, não-ficção, “dessas auto-ajudas que você fica lendo, né?” – quinto lugar entre os best-sellers da New Your Times há cinco semanas, talvez o ajude a contornar o pessimismo crônico), para o caso de sentir tédio e/ou inspiração.
Celular, fones de ouvido.
(Trouxe um power bank de 10 mil miliampères, a bateria costuma durar dois dias de uso intenso no modo off-line – deve bastar, com folga).
Escolhe uma das aulas de yoga que baixou.
(Bonita a moça).
Dobra para frente – importante, apesar de parecer básico.
Abraça os calcanhares.
Ele percebe que há muitas formigas caminhando pela grama, de forma aparentemente aleatória. Percebe que há uma trilha de formigas ali à frente, partindo da sombra de uma árvore e seguindo até sumir de vista.
Algumas folhas de grama cutucam, algumas fazem cócegas.
O pé no chão dá uma sensação estranha de sujeira – estranha mesmo, considerando que aquele chão é mais limpo do que o apartamento no minuto em que o robô aspirador passa pelo ambiente, se for considerar a sujeita ambiente, incontornável, de uma cidade.
Vaca-gato. Quatro apoios.
“Quatro apoios” é um eufemismo para “fique de quatro”.
Claro que se a moça do vídeo dissesse “fique de quatro” o vídeo provavelmente seria usado para fins escusos.
Grama pinica.
Formigas por todos os lados.
“Quatro apoios” na grama e na terra e em meio às formigas parece um desafio desagradável para alguém que quer estar bem consigo mesmo e descansar e tal e coisa.
Difícil sustentar a posição. Ele tem a sensação de estar torto, depois tem a sensação de estar induzindo o núcleo corporal mais em direção às mãos, depois tem a sensação envergar a coluna demais no sentido oposto; depois pensa que as pessoas não saberiam que ele esteve ali, fazendo yoga – será que ele também deveria postar stories?
“Pareceria melhor para quem visse”, ele pensa.
Talvez yoga não seja para todo mundo. Ele fecha o vídeo, tentando disfarçar de si mesmo uma aflição que surgia por não saber o que faria em seguida.
Poderia começar a ler “Factfulness”, talvez seja um bom livro.
As formigas, meu deus do céu como alguém relaxa na grama com tantas formigas andando para cima e para baixo?
Ela teria trazido uma canga, com certeza. Ou uma toalha de piquenique. Ou os dois.
Provavelmente os dois.
Ele busca uma toalha de banho (trouxe toalhas de banho, e descobriu ao chegar aqui que o proprietário fornece jogo de banho); estende a toalha de banho no chão, à sombra de uma árvore.
Recosta-se no tronco da árvore. Arrepende-se imediatamente: a dureza, as pontas e fiapos da casca, a sensação de que alguma formiga poderia subir por lá.
Ajeita as costas.
Yoga para principiantes muito principiantes: ajeita as costas, menino!
Ele ri, de leve. Ri sozinho.
Lembra de um dia em que tomava café na mesa balcão e respondeu a um vídeo que viu no stories do Zeca, do almoxarifado: no vídeo Zeca gritava “Kawabanga” descendo um escorregador em algum parque aquático, e ele, sem razão ou circunstância, respondeu de seu lado “Kaaaawabanga!”. O celular numa mão, a xícara de macchiato na outra, de pijama: “Kaaaawabanga!”. No meio do Itaim. Décimo quarto andar. Sete e meia da manhã de um domingo. E ele: “Kaaawabanga!”.
Ele lembrou disso porque na ocasião ele riu muito: riu alto, depois estendeu a risada, suspirou, depois riu mais um pouco, depois gargalhou, sempre mal-ajambradamente acomodado na cadeira alta. Chorou de tanto rir.
Provavelmente de tanto rir.
E lá estava ele: as costas ajeitadas, alinhadas, rentes mas não encostando no tronco da árvore. Factfulness. Yoga para principiante, muito, muito principiantes.
O ideal seria ter consigo um pouco daquele café mineiro horroroso que preparou. Quer dizer: ideal, ideal mesmo seria ter consigo macchiato. Feito à moda mineira. Pela YouTuber de yoga.
Mas nem tudo é perfeito. Factfulness.
Passarinhos cantando. De fato, bacana isso.
Ao longe vacas e/ou bois mugem. Ruminam. Vacas e/ou bois passam o dia na posição da vaca – sem ofensa à YouTuber. Vacas factfulness, mindset dos melhores.
Falta leadership, mas o mindset focado em resultados e pragmático compensa com folga.
Ele verifica, então, que as planilhas e o briefing para a reunião do quarter estão disponíveis off-line. Busca água, uma mesinha de café da manhã e o Air Mac. Troca a bermuda por uma calça de moletom e veste meias, para evitar um pouco a sensação da grama por baixo da toalha, e para se proteger das formigas.
Factfulness. Legal, isso aí. Ao longe vacas e/ou bois mugem; passarinhos cantam. Por tudo que é canto, formigas passam. Gramas pinicam. Ao redor do globo rapazes odiáveis postam stories de seus feriados praianos, suas namoradas torneadas e bronzeadas, suas caipirinhas cênicas provavelmente muito menos saborosas do que aparentam. Pessoas meditam, fazem yoga, tomam café colonial. Nem tudo vai tão mal quanto podemos imaginar.