Sabe aqueles avisos nos halls de prédio, dizendo para verificar se o mesmo encontra-se parado no andar antes de entrar no elevador? Bom, pelo menos por enquanto posso lhe dizer que pode ficar tranquilo, porque ele não está lá: está aqui comigo, em casa.
Não sei como nem quando ele chegou – nesse sentido os avisos têm razão ao empregar o tom soturno e ameaçador. De qualquer forma dei-me conta, no mínimo desde ontem, de sua presença, e ele é realmente tão incômodo quanto preveem os avisos: está sempre lá, parado, e torna as coisas muito mais perturbadoras.
Meu drama com ele começou logo pela manhã. Eu ia fazer café: acordei, lavei o rosto e ia fazer café. Cheguei, então, à cozinha, pus a água na leiteira e foi então que me dei conta da presença dele.
Eu não o via, claro, não estou num estado tão grave; mas eu sabia que ele estava lá, sua presença se fez notar bem na hora em que ia acender o fogão.
Fiquei lá por um bom tempo: uma mão no regulador do fogo, outro no acendedor elétrico, calculando a presença do mesmo ali ao meu lado, calculando o impacto disso em meu café, sentindo a iminência que era, no fundo, a presença do mesmo.
Quem me salvou, nesse princípio, foi o humor. “Talvez ele queira café”, pensei comigo. Foi uma boa estratégia: com um aceno lateral da cabeça, levemente irônico, virei o regulador, apertei o acendedor, a água começou a esquentar e passei aos demais preparativos do café.
Uma estratégia semelhante me garantiu o acesso ao jornal: talvez o mesmo queira saber das notícias, pego o jornal à porta por mim, mas também por ele. O truque, infelizmente, não foi tão efetivo nesse segundo uso: fiz meu café, sentei-me à mesa da varanda, pus ali o jornal, mas a presença constrangedora do mesmo impediu-me de devotar à leitura a atenção mínima adequada; nem consegui entender direito o título da matéria de capa, tamanho meu constrangimento.
Desde o fiasco do jornal o mesmo tem sido um grande estorvo em minha vida, e já não sei o que fazer. Passei o dia de ontem preso à asa da caneca de café, literalmente: tentei me desvencilhar dela um dado momento, porque meus dedos doíam, mas fiquei desconfortável, não sabia o que fazer com a mão, e rapidamente algemei meus dedos de volta à caneca, vazia então já há boas horas. Senti o calor do meio-dia e o vento frio do entardecer, sempre de roupão e pantufas. Minhas pernas dormiam alternadamente conforme eu as cruzava e descruzava com crescente desconforto. As costas começaram a doer, e então passaram a doer muito, e eu ainda lá.
E o mesmo ainda lá.
Denso, invisível, impassível.
Imagino que já passava da meia-noite quando consegui me desvencilhar da caneca e tomar o rumo da cama (não sei dizer ao certo o horário porque não liguei o celular nem me vesti, nem olhei para relógio algum). Cá estou, por sinal: ainda na cama, no despertar do que deveria ser um novo dia – no meu caso, infelizmente, ainda parece o mesmo, tem cheiro de mesmo, sinto o mesmo por toda a minha volta; bom dia, bom novo mesmo velho dia.
Meu plano inicial quando liguei o celular era ligar para a polícia, ou o Samu, ou para quem quer que fosse, para que me salvassem: sou um refém do mesmo, estou em situação de cativeiro doméstico. Até agora não consegui achar isso ao menos suportavelmente ridículo, e por isso não tomei a iniciativa – a única iniciativa que consegui tomar foi a anotação dessa nota em que relato a situação em que me encontro; pode ser útil: podem encontrar um esqueleto deitado na cama, uma mão presa ao celular e a outra presa à asa da caneca; os peritos, investigando a causa mortis, descobririam essa nota e poderiam enfim relatar: “causa mortis: homicídio doloso, perpetrado pelo mesmo, antecedido de tortura física e psicológica e travestido de suicídio”.
Também pensei em fugir, é claro, pensei em simplesmente pular da cama e sair correndo – o único problema é, evidentemente, o hall do meu andar: e se o mesmo estiver parado lá, me aguardando?
Trata-se, ao que me parece, de um paradoxo: se chamar o elevador, a porta abrir e ele não estiver lá, posso respirar aliviado, mas assim que adentrar caio no poço e morro; se, por outro lado, eu chamar o elevador, a porta abrir e ele estiver lá, isso significa que minha fuga já está condenada antes mesmo de eu entrar e apertar o botão térreo.
Talvez eu possa usar as escadas, mas de qualquer forma ele pode estar lá, no hall de meu andar, me aguardando – e aí?
Em resumo, essa é a crise em que me encontro: preciso escapar do mesmo, mas ele está aqui comigo, e onde quer que eu pense em ir, ele evidentemente estará; já não consigo imaginar saída.
Por sorte, ao que tudo indica, ele parece ter uma inclinação para o café. Quem sabe ele me permite preparar uma bolsa térmica e uma rosca ergonômica em que possa sentar – afinal tudo indica que hoje será mais um novo mesmo velho dia, sentado à varanda de roupão e caneca vazia, e não sei se tenho glúteos para tanto.