A flecha

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Quem vive na cidade imagina muitas vezes que os povos indígenas a áreas florestais vivem perdidose em meio à mata fechada, errando em meio às árvores como escoteiros principiantes, tateando seus caminhos rumo ao rio mais próximo e, assim que possível, rapidamente de volta à aldeia, tementes de qualquer desvio que os condenaria a vagar sem rumo.

Evidentemente, nada pode estar mais distante da verdade: essas pessoas conhecem as matas que habitam tão bem quanto alguém que passou a vida em uma cidade; circulam pelas clareiras e passagens, pelos riachos e corredeiras, pelas elevações e depressões locais como se fossem suas ruas, ruelas, vielas, avenidas. Um homem da floresta tem tanta chance de se perder nela quanto um citadino no bairro em que nasceu e cresceu.

Isso é igualmente verdadeiro no que diz respeito às intervenções dos diversos grupos humanos que habitam aquela região: um indígena reconhecerá a tribo e provavelmente o indivíduo a ter deixado pelo caminho determinadas pegadas, reconhecerá a forma como manusearam os arbustos de onde recolheram frutos para alimentação e pintura, reconhecerá o barulho que produzem ao se locomover em bandos durante caças ou outras missões… e reconhecerá as armas que fabricam.

As flechas dos diferentes grupos, ainda que se pareçam entre si em diversos aspectos estruturais óbvios, e ainda que pareçam iguais aos olhos dos citadinos, são berrantemente distintas entre si aos olhos dos povos locais. Mais que isso: é facilmente discernível quais foram fabricadas com esmero e artifício, em tempos de paz e abastança, e quais foram construídas às pressas e toscamente, por mãos pouco experimentadas ou fustigadas pelos ventos da guerra e/ou da penúria.

Mas nada é mais gritante, nada é mais peculiar e notável, nada se destaca tanto em meio à habitualidade local e a mediocridade cotidiana do que as flechas do Filósofo. Qualquer um, por menos experimentado que seja na circulação e nas artes, por mais obtuso que seja, qualquer um que habite efetivamente as terras locais reconhecerá imediatamente seus notáveis artefatos.

Sua identidade não é conhecida (ao menos ninguém a tornou publicamente sabida); seus itinerários são tidos como imprevisíveis e nebulosos; sua intervenção não parece favorecer a um ou outro dos grupos locais, nem parece pautada pela comezinha luta por sobrevivência. O Filósofo, em resumo, não é previsível, e não é discernível senão pela notável peculiaridade das flechas que fabrica.

Uma característica delas, sem dúvida alguma, prepondera sobre qualquer outra: o fato de que todas suas flechas são fabricadas a partir das flechas de outrem – não se tem notícia de uma flecha fabricada pelo próprio filósofo desde a carne nua das árvores e seixos; até onde se sabe ele não os vê ou valoriza: toda sua presença se resume à intervenção que promove sobre flechas que encontrou algures, de que se apropriou para relançar, renovadas e ressignificadas.

Há outras características, evidentemente: nota-se, por exemplo, que há uma deliberada exuberância na composição das penas, nas gravações inscritas na haste e na ponta – o Filósofo assina suas obras, quanto a isso não há dúvida. Outro ponto consensualmente percebido é o fato de ele se apropriar da mística que o cerca, manipulando e “autografando”, por assim dizer, o próprio frisson que sabe cercar os indícios de sua presença. Por isso é habitual que suas flechas sejam encontradas em locais de grande circulação e deliberadamente à vista dos transeuntes. Essa característica, no entanto, não é absolutamente regular: há mais de uma aparição de flechas do filósofo em locais ermos e pouco habitados, ou em circunstâncias pouco expressivas e simbólicas. Não parece, no entanto, que essas exceções anulam a regra sugerida, mas sim que a qualificam: se é evidente que o Filósofo se manifesta através de suas flechas, parece igualmente verdadeiro que suas flechas fazem parte de si, de forma que ele não as lança apenas para o público, mas também para si mesmo, em suas próprias investidas em meio à floresta e ao mundo que ela afinal é.

Mas não parece que em algum momento ele erra o alvo: nunca se encontrou uma flecha dele no chão, ou fincada nalguma árvores ao léu como se transviada de algum alvo que dela se tenha evadido. Não: toda flecha que já se atribuiu ao Filósofo foi encontrada firmemente cravada em alguma carne ou nó a que se pôde atribuir o claro sentido e destinação, toda flecha encontrou seu recado.

O que não se sabe é se a clareza destas comunicações se deve à clarividência do Filósofo ou se é devida, pura e simplesmente, ao diligente e incansável labor interpretativo dos povos locais, que só descansa quando encontrou, finalmente, a significação do mundo ao redor da qual a flecha pode, explicada e explicante, descansar.

 

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