Menino (parte 1 de Jardim Matilha)

1.

O seu Agenor criou coragem e afundou-se no Fundão, a Cabrita como estrela-guia e a foice como apoio – foi assim que tudo começou.

As gentes do Jardim Matilha encresparam-se, depois da burrada do Ditinho, com a vastidão de espaço perdida ao Fundão, ali por onde corria o Rio Bonito, há tempos já perdido da beleza e das vistas das gentes, afundado no Fundão que só fazia crescer. De início Fundão era o Rio Bonito e o espaço que a gente da Cidade demarcara como reserva e patrimônio; de início Fundão era o Rio, bonito ainda, e o matinho faceiro que brincava à volta dele. Aí o tempo veio, e com o tempo as gentes do Falcão, quando Falcão era ainda só promessas de um futuro, traficante em retirada, e Falcão trazia as gentes e o crescer das gentes fez crescer os restos e os excessos das gentes, e o Fundão foi virando morada do que já não se queria ver mais. A cerquinha do patrimônio virou lixo engolido pelos outros lixos, tudo junto engolindo o Rio e o que mais de bonito por lá tinha.

Foi coisa das semanas, o Jardim Matilha fugindo do Fundão, o Fundão correndo atrás do Matilha – o povo desbarrancava morro abaixo, atrás ia a lixarada subindo o morro, e com a lixarada a bicharada: as minhocas que comiam a terra, as baratas que comiam as melecas, os ratos e pombos que comiam as baratas, as cobras que comiam os ratos, eles todos comendo a coragem de o povo se arremessar Fundão adentro, e assim o Fundão engoliu o Rio Bonito e cresceu avantajado em direção às gentes do Matilha. Foi só quando o Ditinho perdeu-se ali dentro em busca de uma bola arisca e demorou a voltar, emagrecido, enbranquecido, tomado da bicha e da cólera e de um corte feio de latinha de atum entreaberta ao cabo de umas tantas horas perdido de si e da bola, só aí o povo enfezou-se e decidiu contra-atacar e comer à foice a selvageria do Fundão. A dona Ana, mãe do Ditinho, embrulhou-se pra leva-lo ao Postinho lá na beira do asfalto, não sem antes armar um escarcéu que meteu o povo todo em comunhão, metido na casa dela e vestindo a raiva dela, e procurando por ela solução para o desmazelo do acontecido.

Ninguém, no entanto, tinha coragem; mesmo quem trabalhava com terraplenagem, com lixo e esgoto lá no asfalto carecia da decisão – as baratas e os ratos e as cobras vá lá, mas e o que não se viu ainda? Há de ter gente lá, gente morta quem sabe, resto cuspido da gangue do Teotônio, ou gente viva, engasgada da gangue do Teotônio, ou gente desgostada do Falcão, no Fundão havia de ter bichos estranhos e sumiço do bem da gente, terraplenar era coisa de terra de branco, o Fundão era além de remédio, era fundo perdido. Parecia que a raiva do povo pela cólera do Ditinho morreria sufocada no peito do cada um por si, e toda a gente já se punha cabisbaixa à busca de coragem para transmitir o fiasco à dona Ana quando o Agenor disse, entre enfastiado e sem jeito, que os instrumentos não tinha, mas via-se de lado e abaixo daquele medume todo, se emprestassem a ele as botas e foices e facas que se enfiava ali sem medo de monstro e bruxa. Houve dúvida e suspiro, pela velhice que viam no Agenor, pela ingenuidade que viam no Agenor, mas ninguém quis se desfazer da bonança de lançar o boi velho atrás do Rio Bonito a ver que monstro e que vivo e que morto por lá havia, de forma que rapidamente procedeu-se à cata das foices e botas e facas que se podiam dispensar ao mergulho do Agenor. Alguém lembrou-se então de um conto que dizia que o bom de abrir caminho em mato povoado de bicho é a galinha, que a galinha come a cobra e o rato e o mato inerte fica à mão e à foice da tranquilidade do homem; apressou-se a Dalva então a oferecer duas galinhas velhas que tinha, que segundo dizia comiam até o vidro que o susto quebrava, vidro e lata e lixo e susto sumiam galinha adentro que não saíam na titica nem no ovo, chamava as bichas inclusive Cabrita e Cabritinha, e cedia as duas ao Agenor que lançasse-as à cata de mortos e vivos para que melhor adentrasse o Fundão. Agenor a tudo agradecia, aos acenos sutis de cabeça e sem mais dizesse punha-se simples assim aos olhos admirados da gente, toda crente de que lançava à morte o senhorzinho, boi de piranha a afundar no mistério do Fundão em meio aos pneus e sofás e sacos e pratos e matos – pranto, nada.

O dito do Ditinho foi numa sexta, e madrugada adentro, atravessando de sexta em sábado a comoção do povo em casa de dona Ana, mãe de Ditinho, e foi na frente do barraco da Ana que o Agenor encontrou o material do povo que o cedera, a Dalva postada ali em guarda das tralhas e segurando pelas patas a Cabrita e a Cabritinha, batedoras da missão. Agenor empunhava as tralhas sem alarde, e sem alarde o povo disfarçava a curiosidade e despedia-se em silêncio do Agenor, sabida de algum jeito que o Agenor ia de não voltar mais – tudo que cai no Fundão é do Fundão e vira Fundão, some no lixo e vira lixo, com o Agenor não havia de ser diferente. Na falta de despedida, calada no peito da gente, o Agenor esqueceu-se de saber que era o fim e meteu-se ali como quem arruma o quintal de casa de rico, assoviando e tudo.

O povo achou por bem esquecer do Agenor e da sua sorte, cada qual escondeu a cara como pôde em copos, pratos, panelas, bolas, rádios, jornais, rezadeiras, tédios e onde mais coubesse o esquecer-se. Passou a manhã, passaram os cheiros dos bolos e dos frangos e dos carvões e das carnes, passou o som dos radinhos e passou o sol a pino, que a torto e à direita já se punha enfraquecido e avermelhado. Foi pela mão do susto que o povo lembrou que tinha esquecido do Agenor, já quando ele voltava cantando apressado o nome do povo, um em um: ó Maria!, ó Zé!, ó Bento!, ó Dito!, ó Nalva!, ó Dalva!, e assim seguia, a voz do Agenor trazendo o nome do povo mais pra perto conforme ele subia o morrinho, e o povo ia acordando que o Agenor voltava do Fundão e vinha novidadeiro, que a cantoria dos nomes de todos era sinal de grande – grande bom ou grande ruim.

Empostou-se o povo às margens do Fundão à espera de que o Agenor subisse, a assistir inquietos e comentantes o Agenor a chegar contra o poente, emoldurado pela luz quadro de aula de pintura, anunciado de si mesmo, anunciando apressado que o grande era pequeno, e que o terrível era o maravilhoso, e o povo à pressa de entender questionava. E Agenor explicava como podia o milagre que o Fundão pôs a seus pés, e ao dizê-lo depôs aos seus pés uma cesta suja imunda de água barrenta, e em cima da cesta um saco de lixo preto engruvinhando os contornos de um menino, um bebê menino que olhava a toda a gente esquecida de si, lembrada por ele, ele o filho do Fundão, o filho impossível do Fundão. E foi assim que o disse Agenor:

– A Cabrita e a Cabritinha fartavam-se de cobra e rato e tranqueira de sobra, e eu de foice em foice empilhava o Fundão, pilha e mais pilha de entulho e traste, serviço imenso que viraria o mês e que eu não fazia força em apequenar, e da caloria que o sol cuspia tirei direito de pitar um fumo à sombra, antes da última coragem e do retorno; e foi em meio ao nevoeiro da primeira baforada que vi as galinhas aboletarem gritaria e cavalgarem susto, disparadas, embicando um cacarejo grosso mato adentro, mas susto é que não era, havia de ser notícia de algo que a mim me diria respeito, galinhas fazendo vez de anjos. Sem demora acocorei e cacarejei e desbarranquei atrás delas, e em direção ao Rio Bonito íamos perseguindo não sabia o quê. Desci tropeçado e vi o Rio lá embaixo que já nem sabia que havia, Bonito já não é mas é rio todavia, rio de barro e carro e mato e saco e lata e sabe deus o quê, mas corre que eu corria e corre e, virgem santa, ave maria, estava lá; e lá estavam as duas, lembradas de picar o chão e esquecidas de si, logo ali, numa curvinha. Quando as vi, vi logo ali também o cestinho, me esperando, e abri o cestinho e esperando tudo, lixo, estrume, a morte, o bicho, mas não – era um bebê. Era o bebê. Um bebê, vejam! Filho do feio e do bonito, do sujo e do limpo, filho do acaso e do destino, da foice e do mato, filho da virgem, do lobo, da matilha, filho nosso, do Fundão.

O povo, ao cabo do susto, encolheu o pensamento no assombro, que aquilo era mais que esquisito: aquilo era suspeito. O Agenor mostrava o que via, gordo de alegria, via milagre e ave Maria, via no moisés o Jesus chegado, atrasado de salvação mas chegado de divindade, novíssimo testamento do que de bonito haveria de vir, que ele já via antes de conteúdo e já recheado de cores mil. Mas isso que o Agenor via o povo desviava, suspeito, escaldado de solução que brilha aos olhos e logo pesa nas costas.

Da chegada dele o brilho ainda estava lá nos escondidos corações das gentes, e de dentro do povo saiu o que do Agenor ainda brotava gordo; mas o povo nosso é já machucado de aprender que dói, e veloz que rápido estancou a esperança e aplicou suspeita ali onde o milagre ferira o opaco dos olhos – “isso aí tá esquisito”, a Dalva dizia; “que historia é essa, Agenor?”. E dona Ana pronto engrossou o caldo:

– Agenor, o senhor tá dizendo que o Fundão que quase matou meu filho é terra de milagre, é? Que esse coiso que o senhor achou é Jesus? Põe tento, homem, que é pecado ver milagre no que é sujo e no que é feio, põe tento que esse menino te carrega de veneno, e acho que nem é menino e sim coisa do demo!

A gente tropeçou no susto, assustou de chofre e tombou desajeitado no diagnóstico da dona Ana: o menino era filho ruim de terra ruim, era do demo, era do Fundão; e foi fácil entender a solução: que voltasse, terra comesse e estrume cuspisse, rato amassasse e cobra rastejasse no resto que fosse, assim corria o Fundão e assim seria do menino.

O Agenor inflou de espanto, cresceu o peito e estralou os olhos e agilizou o olhar em volta das gentes em busca de diferença que não viu – era tudo um medo grande e opaco, entuchado apressado gente afora e menino adentro, disfarçado de crença e descrença e pedindo aflito pra que se empurrasse o sacrifício morro abaixo, lá no fundo do Fundão de onde nada volta. Do estralo das esperanças descabidas explodiu primeiro Agenor:

– Arre, povo!

Isso Agenor cuspiu qual rugido; e era maternal, o Agenor; era crente, o Agenor; era bom, o Agenor: fuzilou o olhar e o rugido e a carranca, deitando gorda sua coragem sobre nosso medo, tomou o menino nos braços e foi-se decidido, deixou a roda que ali se formara vazia por dentro e sem tento de o que fazer do suceder insólito das coisas.

2.

                Saído o Agenor e o Menino-do-mato brotaram as que faltavam gentes, gentes aboletando de suas janelas e resvãos de porta, apinhou-se a roda vazia de centro a fazer-se reunião, qual dias antes fora a reunião da Dona Ana em que se clamara pela providência em resposta ao infortúnio do Ditinho. Parecia ao povo agora que o infortúnio parira um irmão, esse ainda acrescido de mistério e assombro – que o padecimento de Ditinho era da ordem das coisas, já que meter-se no Fundão era desaconselhado a quem fosse, quem diria a criança em pés pelados desandada a seguir bola fugida; mas que o Agenor trouxesse do Fundão, das margens do Rio Bonito que já não se via, que de lá trouxesse um menino, anjo velho anunciando jesus em terra sem deus, isso já não podia, havia em Agenor ou em quem por ele agisse sedução, enganação ou matreiragem.

                O povo ali reunido procurava tino do ocorrido, os entendimentos vários se esparramando aos derredores de quem os brotasse, como folhagem fraca noticiando a fraqueza de planta murcha. E uns iam entendendo no caso todo estratagema de Agenor para trazer à casa filho indevido. E outros iam entendendo que alguém lho vendera a criança em fuga desvairada mato afora. E outros ainda iam sugerindo que o menino era filho do lixo, um monstro feito de lixo e rato e estrume e cobra e pneu recapado, coisa monstra parida de coisa ruim e metida, claro, a nada de bom.

                Na época do sucedido o povo do Falcão era recém-chegado a Matilha, e de tantas vezes ajuntados em reuniões e assembleias e requisições deu que se fizeram unidos, pois por isso conheciam-se bem e muito, conhecidos de ditos e desditos e inventados ao prazo e fiado e a juros. Foi desse agasalharem-se próximos que deu de um deles, que já foi-se da Matilha há tempo e cujo nome foi-se também daqui e de minha lembrança, pois que esse dentre eles atinou súbito que o pai do Erisvaldo, velho e vivo à época, era pai de santo e via as articulações e as juntas do destino conforme este apertava a vida dos homens, e poderia desprende-los todos de desgraça que fungasse o mundo por meio do filho do lixo, e fá-lo-ia por meio de oferendas e sacrifícios tão feios de ver quanto bons de certeza. O proposto alastrou rápido, e ao som da iminência os crentes encontraram desculpa para fingirem não saber, amolecendo o grupo de fés impróprias às tratativas que se impunham a todos como devidas e fazendo o certo do pensado.

                Mas antes que Erisvaldo pai interrogasse os ofícios do além e lesse pelas tortas linhas que ali se escreviam houve tempo ainda de Falcão chegar, abrupto como de hábito. O carro gordo mal cabia nas magras ruas, as gentes entre se aproximarem e abrirem caminho trançavam as pernas – Falcão fervia os medos e nojos das gentes da comunidade, era o nó da garganta oprimida daquele povo a virar grito e choro e morte em prenúncio de ao redor de si. Pousava já agitado Falcão, gulosamente ciscando aqui e ali, entregue aos cumprimentos e abraços de meio braço, media as gentes e dizia belezas e se apressava, porque tinha ainda muita mutreta pela frente. Naquela época era um mais ou menos que como todos: os dentes ainda de pobre, o andar ainda de malandro, os ternos mal vestidos pela falta de traquejo do Falcão em seus primeiros ataques de candidato, a calma falsa amarrotada pela inquietação que atolada Falcão, assolado já então pela iminência de sabe-se ainda o quê.

E as gentes falaram, confusas e incertas, falaram de um menino, ele soubera de um menino, que menino, onde estaria o menino, sabiam do menino? Agenor, disseram, Agenor, sabiam, alguém, notícia, Agenor? Ali? E assim foi-se ter com Agenor, e o susto dele ficou de igual tamanho com as gentes: entretidas com a surpresa da passagem de Falcão, já há muitos meses sumido no asfalto à cata de outros potenciais assentamentos. Entretidos de saber que algo rebaixara Falcão de seus altos vôos, Falcão descendo morro acima e Matilha adentro. Os capangas de Falcão meteram-se inquietos, à beira do carro a espionar forte as gentes, matutaram entre si se teriam feito algo errado e se algo errado poderia ser feito deles, calcularam meses e prazos e nomes de vereadores e assembleias e apoios, contaram coisas que fizeram as vezes de carneirinhos e esqueceram o medo e assomaram-se a nós, que estivéramos curiosos o tempo todo à espera do que seria de Agenor e do bicho filho do lixo.

3,

                Não houve barulho; esperamos, e não houve barulho; procuramos, e não houve barulho. Um homem pode morrer sem fazer barulho, disso sabíamos, mas Falcão parecia descuidado e Agenor parecia arisco e o certo era que houvesse arruaça e ranger de dentes e quebrar de ossos, mas nada. O silêncio seguiu-se ao silêncio e assustamo-nos todos quando Falcão saiu da casa, o bote perdido, os olhos injetados de um fracasso desornando num homem metido em terno tão impróprio – se Falcão subornou-se a um terno foi para nunca mais ser frustrado, blefe que Agenor ainda que rústico trucara e afundara sem cair.

                Foi um sábado todo errado. Não houve futebol, nem forró, e o Jairo não abriu o bar; fez-se luto não declarado de um passado que a gente ainda não vira passar, mas sabia que passava. Quem vinha de outras ocupações sentia cheiro de trator no ar, tirava os sacos do armário e deixava a vela à vista. Em meio ao bote do Falcão o povo esqueceu do Erisvaldo e deixou-se cedo em casa, matutando como podia nos destinos de aquilo tudo.

                Não houve barulho, mas quem enfeita bem a lembrança conta mesmo que ouviu o barulho suave da porta do Agenor abrindo, da bota do Agenor andando, do mato do Fundão farfalhando. Mas não houve barulho, a noite passou inocente ou faceira ou desdita.

                Uma hora amanheceu, e o que houve foi o susto de quem bisbilhotou o Agenor pendurando pela manhã roupa de mulher no varal. Faltava já o espanto, que quando ao estranho segue o bizarro já ninguém lembra de espanto e põe-se logo a esperar sapos e príncipes e princesas e dragões. O povo já ia carregado pelas historias tantas que a noite produzira, e de ver o vestido mal lavado e as roupas íntimas desenhou-se em desvario o que em fantasia se rascunhara. E foi assim que as mulheres da ocupação do Cativeiro, tendo conhecido Agenor de seus tempos de casado, atinaram que ele trouxera à casa à moda de Jesus filho concebido em pecado, e agora trazia na calada da noite a faceira que emprenhara do viúvo.

E por isso foi estufadas de direito e justiça que foram ter com Agenor, e houve barulho largo. Diz-se que encontraram ali o filho do lixo à mesa de jantar vertida em berço, a dita pecadora desfalecida à cama, Agenor no banheiro, e foi sem demora que entenderam o que já sabiam – viram o casal enfronhado em amores poucos e loucos, e da inveja fez-se despeito, despencando logo sobre a moça, em justiça à memória de dona Alva, crente exemplar e sobrevivente em glória e bênção do pecador que o inferno haveria de comer. Agenor saiu do banheiro assustado e lançou-se ágil ainda que velho em meio à turba, e em gritos roucos fez-se macho e justo, fez-se juiz e bandeirinha, apontou dedos, exigiu vergonhas, demonstrou vexames.

A moça, contava ele, era mãe do filho do lixo, mas não era nada sua que não a responsabilidade que em nome de jesus e como homem livre assumira – pedira-lhe clemência, a tal, e ele lha prometera. Na opinião dele, portanto, nada havia ali que dissesse respeito às mexeriqueiras, desentendendo cedo demais que a mexeriqueiras tudo diz respeito, mas ele assegurava e repetia e pedia a todos que passassem bem e logo e punha-se à porta. Caras fechadas, frases cortadas, nada entendido, tudo resolveu-se ao suspender-se uma vez mais.

4.

                Às nove horas Eriosvaldo recebeu os inconformados para dar direção ao trabalho de seu pai; achegou-se o povo, arrastaram-se cadeiras a rabiscar um círculo. O velho a tudo acompanhava, nada enxergava mas tudo ouvia, pitava maconha a fazer vezes de fumo de corda, tragava um líquido transparente de um copinho que não atinou a ninguém descobrir se era água ou aguardente, fungava o povo entrando de lá da cadeira mesmo, ria de ninguém sabe o quê. Levantou-se quando o silêncio assentou, arranjou-se na cadeira que ninguém sabe como achou, andava lento mas firme e seguro, sem bengala, sem manqueira, sem corcunda: era um velho com jeito de moço com jeito de criança, a esquisitice que era só.

O velho perguntou pouco, posto que como aprendiz de espírito e demônio sabia sempre e muito; viu do fundo de seus olhos brancos que era tempo de renovação em Jardim Matilha. Os filhos do Falcão – anunciou com voz sinistra – devorariam o filho da desgraça, e a balança da justiça penderia e se perderia entre estilhaços e mortos e feridos e sofrimento. O tempo comprimia as sortes das gentes: o tempo da reza era o tempo da doença, era o tempo da cura e da tormenta e da morte. O filho da desgraça era a insistência e a incerteza da beleza, era a ternura e a tormenta dos medíocres, era o resto e o teste dos tempos de carestia. Não!, o velho gritou, esmurrando a mesa; e não, o velho disse, relaxado, enquanto o punho descerrava e o cenho descarregava. Olhou em volta, os olhos brancos, fez-se sábio cansado, serviu-se de cachaça – agora era cachaça e todos viam, posto que tomava do gargalo – e foi-se postar à cadeira de balanço em que, a crer em Eriosvaldo filho, regularmente dormia.

                O povo presente saiu encantado, fez-se esclarecido, volteando em certezas confusas os saberes enigmáticos do xamã. Tanto aprenderam, tão pouco sabiam, que fariam? O domingo era longo ainda à frente do Jardim Matilha, e os dados pareciam à espera dos truques antes de desmancharem sua sorte sobre o povo, azedo de tanta novidade confusa.

5.

                Pendurou-se muita roupa no varal do alto do morro, ali entre a casa de Agenor e o Fundão. Agenor abriu a janela antes das onze, e sua casa virou de repente como que um presépio, visitado em rondas discretamente combinadas de mexeriqueiros, procurando disfarçar e não conseguindo que procuravam com o canto das fuças o menino-bicho escondido e a pecadora inocente misteriosa. Os pregadores faziam-se faceiros e o povo demorava a encontrar o tino das roupas enquanto os olhos procuravam o tino da sorte, escondido ao que se dizia em algum lugar no barraco de Agenor. Mas a cena era demais como presépio, pois que o mesmo Agenor fiava o tempo sentado ao pé do da mesa, onde o mesmo filho do lixo dormia sereno, e a mãe do pecado sempre ali dormindo também, suada e inquieta, balançando esquisito, aparentando dores e medos. No presépio era sempre e só Agenor velando o filho do lixo e a mãe do pecado, era Agenor arauto da sorte: postura de santo, tão perto da morte. O dia passou vagaroso, iminente o tempo todo, faceiro, escondendo seu jogo; quem pôde criou ofícios, quem não pôde fabulou destinos.

6.

                Eriosvaldo filho sabia o que não sabia fazer; sabia que não era certo que o pai traçasse fora da mesa os cruzamentos dos búzios que lançara em nome dos mortos. Quem matava era a sorte, e não o artifício – ou era assim que era pra ser. Se Eriosvaldo pai tramava mutretas com o Falcão e os falcõezinhos, isso era parte da história e coisa que não se conta e se tenta esquecer: nada resolvido, nada a fazer; mas assim desse jeito, vendendo mutreta vestida de espírito, vendendo arapuca em pele de clarividência?

                Como sabia que não sabia não fazer nada, Eriosvaldo filho decidiu que interviria quando viu que Eriosvaldo pai matutara com Delmiro as instruções que receberia das instâncias superiores: se Agenor recebera um filho do Fundão, e se Falcão visitara Agenor e saíra frustrado, e se Falcão é candidato e depende da Matilha, então Agenor portava a sorte da Matilha em sua casa. O cego vertia alusões, ninguém sabe se vendo ou não vendo derramar-se em Delmiro pouco mais que certezas ligeiras. O que Eriosvaldo filho viu foi o pai matando em tiro cego as incertezas que Agenor trazia, ele nisso tão cego quanto o pai, e Eriosvaldo filho viu Delmiro matando às cegas um risco riscado pela mão de quem não disse nem nada nem a mor de quê, e a cegueira de tanto dizer esparramando destinos à mesa Eriosvaldo filho não soube não ver: pegou ele também seu punhado de roupa e foi-se sem jeito ao presépio de Agenor.

                Se dissesse a história em linha reta diria de um encontro que por lá houve; diria de conversas e matutagens, medos soterrados por coragens, diria de bondades que brotaram em meio à lama, qual flores em meio ao concreto. Mas as coisas mais importantes – assim me disseram – as coisas mais importantes são as que não se dizem: o destino é o filho dos acasos jamais contados, nossa história é o negativo da história de gentes cujas histórias não se disseram a ninguém.

                Sabemos da bondade de Eriosvaldo filho, bondade que enfim superou a vontade de não ver, e quando Eriosvaldo enfim viu o que viu foi que seu pai não foi jamais cedo: via com olhos escondidos das vistas, tramava histórias desencarnadas dos assuntos das ruas. Crispada a consciência, a raiva forçando as vistas, Eriosvaldo filho decidiu herdar a cegueira do pai, decidiu escrever também ele as histórias das gentes nos espaços brancos entre as vistas da boataria que narra os tempos – vendo maldade nas tramas do pai, o filho decidiu tecer bondades às costas das páginas da história.

                Um dia, de chofre e de sorte, saberemos enfim o que disseram uns aos outros Eriosvaldo filho, senhor Agenor e a mãe do filho do lixo – esse dia, sabidamente desconhecido, vai vir no dia em que se escovar a história, desenterrando os nós e pós e os bichos e roubos e medos; um dia o povo do Fundão vai poder contar, vivida ou inventada, a história de seus calvários. Enquanto esse dia não vem o que nos resta é o resto: Eriosvaldo filho foi à casa de Agenor, tornada presépio, fez-se anjo a narrar destinos e origens, fez-se mensageiro de desígnios e propósitos, fez-se engenheiro de tramoias a divisar salvações, tentaram evitar o que não se evitaria de todo.

                Sabemos, por mais que se queira esquecer, o que não se pôde evitar: a casa de Agenor queimou naquela noite, desprovida de gentes.

                Agenor sumiu: não se sabe que ele foi morto em meio às ruas do Jardim Matilha; não se sabe que ele desapareceu em meio ao Fundão. Ninguém sabe dessas coisas que aconteceram, ou ninguém diz saber. Não se falou dele, nem do incidente em sua casa. Não se sabe que o incêndio em seu barraco não foi acidente; não se sabe que ele foi eliminado.

                Ninguém se lembra da mãe do filho do lixo, e ninguém se lembra dele, o filho do lixo. Ninguém comenta sua aparição, ou sua desaparição. Ninguém espera redenção, porque ninguém sabe que sente culpa.

                Ninguém fala, mas todo mundo sabe que eles não morreram – em algum lugar, no fundo, todo mundo sabe que o Fundão esconde o Rio Bonito, e que a história de quem foge não cabe na história de quem fica. Ninguém espera que ninguém retorne. Ninguém se opõe ao Falcão, porque nunca houve oposição, porque se alguém eventualmente se opôs sumiu da história. Não há veneno, não há remédio, não há ascensão nem tampouco há glória. Os filhos do tempo são órfãos: se o tempo ousar andar ouve-se um gatilho, um engasgo e um destempero, e então nada aconteceu e a fila volta a nunca ter andado.

7.

                O menino bate contente na porta. O dia foi tranquilo na escola, e tudo que ele quer agora é brincar, conversar e estudar com Geni.

                Ele não entende direito o que Geni faz, mas sabe que ela trabalha à noite e se sente estranha e com sono ainda na hora do almoço; sabe que envolve homens e sentir vergonha; sabe que ele é a única criança que circula pela casa onde Geni mora; sabe que gosta de Geni mas não gosta da casa, e queria que ela pudesse trabalhar com outra coisa para poder morar em outro lugar, e poder sentir menos cansaço durante o dia.

Ele gosta de estar com ela: sente que ela encontra com ele uma felicidade nela que ela perde de vista na maior parte do tempo; sabe que é importante pra ela. Ele não entende direito, mas sabe que também encontra com ela algo que é importante pra ele, mas que não tem nome. Não que ele saiba.

                Não ainda.

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