Oi.
Se incomoda se eu falar?
Ha! Claro que não… mas pra mim mesmo é estranho; começar, sabe? É estranho.
Então… queria ler uma coisa pra você, que escrevi um dia desses pensando em você.
É assim: “eu quero te contar, meu grande amor, de coisas que aprendi nos livros. Não que eu tenha sonhado, nem vivido, mas melhor: cá e lá, vivi o sonho que os livros jogaram em mim.
Eu sei, meu amor, que tem coisa boa na vida de qualquer pessoa, mas eu andei vendo e prestando atenção e… cuidado, meu bem. Há perigo na esquina, e na rua. Porque eles venceram, e a gente não vai por nossos sonhos pra desfilar; saindo da agenda deles, amor, decreta-se quarta-feira de cinzas.
“O que é isso?”, você deve pensar – pirou?, é alguma nova invenção? Sim e não, amor, isso que te digo; olhei pra gente e não vi o futuro que cabe a nós construir.
Já faz tempo que a gente não se vê na rua, e eu sinto falta do seu cabelo ao vento, a gente, jovem, andando na avenida. A minha memória deseja um futuro, deseja essa lembrança, mesmo que venha a doer demais. Porque hoje eu vejo que quem nos dava as ideias pros cartazes, pros panfletos, ditava as lutas… tava em casa, guardado por deus, contava dinheiro e compunha os jingles que a gente gritaria – era um trampo publicitário, e éramos público.
E minha dor, na real, é perceber que apesar de tudo tudo tudo que fizemos, amor, nós já não somos os mesmos, e hoje vivemos como nossos pais”.
…
Lembra dos vinte centavos, Elis? Lembra da gente andando pela Marginal? Então, ontem não consegui dormir, fiquei pensando nisso. Desculpa a brincadeira infame com o seu nome, por sinal – sei que a arte da Elis toca mais a mim que a você, e sei que você nunca teve em vista nenhum risco real de ser como seus pais; o que me preocupou e me tirou o sono ontem tem tudo a ver com isso, na verdade: eu de alguma forma tinha esse medo, mas nunca achei que pudesse acontecer, e aí ontem dei por mim, olhei pra mim e já tinha acontecido. Aconteceu: sou como meus pais.
Não é nada óbvio, nada caricatural ou ridículo: você me conhece, sabe que eu não coleciono selos, não jogo damas na praça nem trabalho de terno e gravata, e de fato não tem nada a ver com isso, é muito mais rasteiro: tem a ver com o que eu me vi sonhando. Quando éramos novos, ainda lá no clube e no Santa, a gente sonhava com mundos diferentes, melhores, onde tudo fosse diferente… lembra disso? Você tinha um lance com as famílias, já nem lembro bem, mas tinha a ver com as pessoas não serem criadas pelas famílias e sim por um grupo ou instituição, sei lá, você leu algo no Marx e sonhou isso; eu tinha aquela ideia maluca de ter uma casa-comunidade, que fosse minha mas onde todo mundo tirasse o sustento do que se fazia ali, jardineiro, cara da piscina e eu vivendo por ali do que ali acontecia – tipo permacultura só que mais adolescente, e brega. Mas enfim, eram ideias toscas, ideias estranhas e impossíveis, mas que a gente sonhava com a maior força, acreditava totalmente naquilo – e como a gente acreditava naquilo a gente acreditava na gente, e no que a gente fazia.
E foi isso que mudou, Elis. Ontem eu conversava com o pessoal do coletivo, o grupo já tinha acabado, e a gente falava sobre as perspectivas e os projetos e as frentes de intervenção, tudo isso. Aí eu parei, de repente, olhei pra nós mesmos como se me visse de fora, de ângulo, e olhei pra cena e disse: somos burocratas. Eu até disse, disse mesmo, as palavras saíram da minha boca e o pessoal ficou me olhando com cara de “que foi isso, mané?”; eu não expliquei, obviamente, e puxei outro assunto como se aquilo fosse só um descuido, um descuido meu com a etiqueta do tácita do grupo.
Acho que estou sendo confuso… você está me entendendo, Elis? O que quero te dizer, o que vi ontem e me tirou o sono, é que viramos burocratas de uma engrenagem lateral, uma maquineta, e os sonhos que defendemos não são sonhos, são os produtos hippongas que consumimos. Sabe?
É estranho pensar nisso, porque eu me sinto de alguma forma sendo profundamente injusto com nós mesmos e com as bandeiras que representamos, até porque eu sei que conquistamos coisas e fizemos alguma diferença, eu sei disso. Mas ao mesmo tempo… sabe, um dia vi uns comentários muito estranhos na página do Face. O Pedrão não apareceu e eu precisei moderar a página, aí vi um comentário pendente em uma postagem já bem antiga, um vídeo nosso naquele dia macabro do hino em Pinheiros. Bom, pra encurtar a historia o comentário era de uma menina que tinha participado naquele dia, e ela dizia que aquilo foi a coisa mais importante que aconteceu na vida dela, que ela chorou cantando o hino e etc – triste, né? Mas ela é militante, entendeu? Não é dos caras, ela não é de partido mas ela é da esquerda, já frequentou um grupo feminista lá no interior e em São Paulo ela é tipo entusiasta, cata-balão.
Então… sei lá, Elis, eu acho que eu não devia estar te contando nada disso, não deve te fazer bem… mas não sei, eu não consigo não…
Eu escrevi pra essa menina, Elis. Por isso sei essas coisas da historia dela, que ela obviamente não postou no comentário, eu falei com ela no messenger e marquei de sair com ela sexta-feira agora.
Putz.
…
[Esse é, hipoteticamente, um capítulo de um livro chamado “A expressão do indizível”, que por ora existe só como projeto].
Muito bom, Will. Abraço, Piero.
Leria esse livro.