Estava no lobby de um hotel às margens da orla; eu o esperava há meia hora, sentada a uma mesa próxima à piscina faiscando o sol, ofuscante, majestosa – um pouco esforçada demais para o meu gosto. Em vista do ambiente de clipe de hip hop americano, do recepcionista me anunciando e me encaminhando, do garçon me indicando a mesa e me servindo a água e o couvert que eu não pedi, em vista de toda a ambience fui imaginando uma entrevista pedante, um olhar pedante, posições pedantes. Em suma: esperava uma tarde desesperadoramente chata e uma matéria boa, ao melhor estilo Alfa. Evitava a piscina e seu brilho de bijuteria, alternando o olhar entre as mensagens que trocava com o Beto (peguete da quarta-feira com quem jogava então, e com quem namorei depois por três semanas) e as pessoas de carne e osso ali na praia, alheias à vida posuda do hotel cinco estrelas. Entretida que estava com meus olhares de esgueio e minha vontade de não estar lá, acabei não reparando quando ele chegou. Ah!, que vontade eu tenho de saber se ele chegou procurando os olhares e um eventual reconhecimento, se chegou admirando o próprio nariz tampando a luz do sol, ou se chegou como chega quem chega em casa, ou no boteco, sei lá. Mas eu não sei, quando dei por mim ele estava perguntando ao garçon se tinha chegado a Laura, repórter – na realidade olhei para eles justamente quando ele voltava o olhar na direção que apontava o dedo do garçon, buscando a Laura.
– Oi, Laura, tudo bem?
– Tud…
– Demorei, não é? Desculpe, o recepcionista disse que providenciaria alguma coisa para você – é isso aqui? Isso aqui é pão com alho? -, eu tinha acabado de acordar, vi o sol, vi o mar, e senti que precisava de um mergulho!
– Sem problemas, senhor Sig…
– Pedro, por favor.
– Pedro. Bom, vamos começar?
– Já começou, não é mesmo?
Bom, esse é o clima, esse é Pedro Signorelli. Eu, até então toda pronta como carruagem bélica, canhões a postos, tudo reluzente e pronto, de repente me peguei convertida em abóbora, numa simples chegada anti-triunfal. Signorelli, subitamente alçado à celebridade com o sucesso retumbante do “Do Majestic ao Partenon”, que pelas leis da física deveria estar navegando em plumas de ganso e arrogância, me surge de repente de ressaca, chinelos e um pedido de desculpas ultra colegial. Eu já tinha feito coisas parecidas antes e poderia perfeitamente entrevistar uma celebridade-do-mês, esnobe e cheia de si, encher uma matéria de sarcasmo e… bom, cumprir o protocolo. Mas aí me chega o Pedro-moleque, cheio de simplicidade e alguns ataques fugazes de psicanálise de criado-mudo, e eu me pego derretida, eu também remetida de volta ao colegial.
O Beto tinha acabado de falar alguma sacanagem mais pesada pelo Whatsapp, e eu estava um pouco desnorteada, a espiral do bloco enroscou e ele me percebeu nervosa, comentou alguma coisa sobre meus dedos finos, o vermelho do vestido e o vermelho do meu rubor, eu me peguei na obviedade do “flerte à jornalista”, ele recusou a jornalista e disse que se ele era o Pedro eu era a Laura, eu insisti na teoria do flerte e ele finalizou, magnânimo: recostou-se na poltrona e soltou um “como quiser” que abriu caminho sabe-deus-como em meio ao seu sorriso largo.
Eu pedi a ele a sinopse do livro e alguns comentários, ele já separava o nosso encontro ali da dimensão “business” da matéria, olhávamos juntos para as questões a ser superadas – eu não trabalho assim! – não sei onde me perdi. Ele não fazia força, de forma alguma – talvez o “golpe” inicial dê essa impressão – estava claramente ali comigo como quem está passando a manhã com uma pessoa que acabou de conhecer, como uma e-date, algo do estilo; e eu, muito menos por jornalismo que por desatenção, fui me deixando levar. Conversamos.
Em algum momento contei do Beto – não sei como chegamos a isso, ele estava falando do livro e do casal do livro, juro! – e ele me contou que ao mesmo tempo invejava e estranhava esse mundo dos encontros. “Que mundo dos encontros?”, perguntei, óbvio. E foi dali, e só dali, que saiu a matéria (a montagem da entrevista e as minhas perguntas eu implantei depois).
– Olha, eu estava um dia desses no metrô e imaginei uma pergunta que você me faria; eu não tenho muita experiência em entrevistas e a maioria que faço é dessas pré-fabricadas, por e-mail e com edições radicais, pouco importa o que eu diga. Bom, a sua me interessou, e batia justamente com essa cena chique da minha passagem pelo Rio para o Congresso, de forma que acho que fiquei engrandecido com a perspectiva e brincava de me entrevistar. E, bom, a melhor pergunta que eu me fiz nesse tempo todo, que você me fez na minha cabeça, foi: “Pedro, você se considera um animal errante?”. Essa pergunta, não sei se é tão boa, mas o fato é que ela me mobilizou para lugares divertidos. Você se considera errante? Não saberia dizer ao certo se o Beto e a balada e tua manhã comigo são errâncias, não sei se são parte de um sedentarismo esparramados… sabe? E eu mesmo também não sei de mim, não sei se o que eu faço faz de mim um errante ou um sedentário. Eu te digo sem sombra de dúvida que eu sou um cara “cavernoso”, que eu não consigo me sentir eu mesmo quando eu estou com gente, talvez isso faça de mim um sedentário, ou um eremita, ou um errante desses de beira de estrada. Mas minha estranheza diante das gentes não me diz que eu não goste de gente, porque eu gosto demais, e sinto muita falta. Como você aqui: gosto de você aqui, e sentiria sua falta se você saísse e eu ficasse aqui na piscina até à tardinha – à tardinha eu queria assistir o Fontanelle no Congresso – mas até à tardinha eu cultivaria tua falta.
– Mas isso é erro?
– Não sei o que é erro, Laura, não sei mesmo. Mas essa coisa do errante e do sedentário me pega. Você é errante?
– Não erro a ponto de virar entrevistada do meu entrevistado.
– Acho isso um erro – estamos nessa juntos, né? Mas eu de fato me pego com esse limite, porque o espraiamento pelos horizontes vastos é um retrato um pouco marqueteiro demais do errante para o meu apetite; e ao mesmo tempo eu sei que eu daria um bom sedentário, e é bem provável que eu seja mesmo um – mas se sou, sou um sedentário inquieto, e isso de alguma forma faz de mim um errante… ou não?
– Acho que o errante que tem certeza que é errante não erra mais tanto assim, não é?
– É, pode ser. O ponto disso tudo é que o Majestic e o Partenon são as imagens do impossível, e o que rola entre os dois prédios é a tentativa de ancoramento daquilo nos personagens que não tem âncora para se fixar. A menina (eu sempre chamei eles de “menina” e “menino”, os nomes vieram do editor) erra muito mais que o menino, apesar de não parecer assim para quem chapa o livro contra o gabarito de um livro-texto de Foucault ou de Deleuze. E isso justamente porque a menina não se ancora nesse discurso narcisista do errante sem causa que tanto toma o menino. O menino, “entregue aos devires” e “no fluxo” e tudo isso, bom, ele na realidade está amarradíssimo numa auto-imagem e numa caverninha subjetiva, só que uma caverninha pós-moderna.
– Mas pensando nisso que você me diz vejo que a melhor pergunta que eu te fiz é um convite a um narcisismo pós-moderno… ou não?
Eu me senti um pouco inflada quando fiz a pergunta; estava pegando ele no pulo, tinha virado a filosofia de cabeceira dele do avesso, escancarado a farsa do riquinho. Ele sorriu com o canto da boca, com uma arrogância boa-praça que foi virando a assinatura dele pelo que vi nos últimos vídeos.
– Acho que sim. Bom, taí sua matéria. Agora, eu vi na internet que você é formada em letras… me ajuda com a fala para amanhã? Estou perdidíssimo. Você entende alguma coisa de Wittgenstein?
Eu arqueei um pouco as costas em direção ao encosto (pelo susto mesmo, sem encenação), enquanto ele emendava a proposta de que discutíssemos ali ao pé da praia, onde ele tinha visto um senhor vendendo água de coco.