Hora de uma mudança de paradigma – crítica dos psicólogos ingleses ao DSM 5

 Compartilho abaixo uma tradução livre que fiz do documento “sobre a Classificação de Comportamentos e Experiências em relação aos diagnósticos psiquiátricos funcionais: hora de uma mudança de paradigma”, redigido e publicado pelo Departamento de Psicologia Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia. Em postagem posterior teço meus comentários e exponho minhas opiniões a respeito – fiquemos, por ora, com o documento. O texto original está disponível no site deles, clique aqui para ir lá.

Declaração da Divisão de Psicologia Clínica [do Reino Unido][1] sobre a Classificação de Comportamentos e Experiências em relação aos diagnósticos psiquiátricos funcionais: hora de uma mudança de paradigma

 

O DCP assume a posição de que é apropriado e em tempo afirmar publicamente que o sistema classificatório atual, conforme delineado pelo DSM e pelo CID, em relação aos diagnósticos psiquiátricos funcionais, apresenta limitações empíricas e conceituais significativas. Consequentemente, há necessidade de uma mudança de paradigma em relação às experiências a que esses diagnósticos se referem, em direção a um sistema conceitual não baseado em um modelo de “doença”.

 

CONTEXTO

Classificações são fundamentais para a medicina. Para que sejam eficazes, é necessário um sistema válido e confiável para a categorização de fenômenos clínicos de forma a auxiliar na comunicação, optar por intervenções, indicar etiologias, predizer desenvolvimentos e oferecer uma base para pesquisa. O diagnóstico médico é o processo de associar um padrão individual de sintomas e sinais biológicos a um padrão estandardizado de classificação, assegurando que alternativas similares mas distintas são descartadas no processo – o chamado processo de diagnóstico diferencial. Os padrões, em si mesmos, são comumente categóricos; se é um não pode ser outro, embora diversos possam ocorrer concomitantemente (co-morbidade).

            Em psiquiatria, diagnósticos baseiam-se no uso do Manual para Diagnóstico e Estatísticas em Desordens Mentais (DSM5) e na Classificação Internacional de Doenças: Classificação de Desordens Mentais e Comportamentais (CID-10). A revisão regular desses dois sistemas maiores de classificação é um reconhecimento claro de que são, e permanecem, trabalhos em andamento. A necessidade de revisão é consequência não apenas da necessidade de acomodação de avanços (baseados em evidências) do pensamento e da prática a respeito, mas reflete também preocupações mais fundamentais quando ao desenvolvimento, ao impacto pessoal e às assunções mais básicas e profundas dos sistemas em si mesmos.

            O desenvolvimento e utilização desses sistemas de classificação para o sofrimento psicológico e comportamental jamais esteve isento de controvérsia. Muitas das questões emergentes em relação aos diagnósticos de psiquiatria  deriva da aplicação de modelos advindos da classificação médica de doenças físicas ao campo dos pensamentos, sentimentos e comportamentos, como fica implícito em termos como “sintomas” e “doenças mental” ou “doença psiquiátrica”. A Divisão de Psicologia Clínica (DCP) é historicamente marcada por visões ambivalentes em relação à classificação psiquiátrica e suas implicações na teoria e na prática, refletindo sua posição como praticantes representativos da clínica em um amplo espectro de especialidades e como um corpo científico.

O DCP reconhece que: 1. os sistemas classificatórios atuais concentraram muita pesquisa e teoria na área e definiram a estrutura e operação de serviços de saúde mental. 2. [reconhece que] esses sistemas oferecem entidades aparentemente “tangíveis” para utilização em sistemas de seguridade, benefícios e de administração. 3. São sistemas amplamente aceitos pela maioria dos grupos profissionais, muitos usuários, pela mídia e pelo público em geral.

Ao mesmo tempo, é necessário perceber que muitos diagnósticos psiquiátricos funcionais, como esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno de personalidade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, transtornos de conduta etc, devido a sua confiabilidade limitada e por sua validade questionável, ofereceram uma base falhada e instável para a prática, a pesquisa, a construção de guias de orientação e intervenção e para o uso não clínico de diagnósticos, fiados na suposição de estarem baseados em evidências. Essa situação tem gerado preocupação em diversas áreas profissionais ligadas ao campo, já há muitos anos (como exposto em Barker, 2011; BPS, 2000, 2011; Boyle, 2002; Bentall, 2004; Bracken et al., 2012; Coppock & Hopton, 2000; Johnstone, 2008; Moncrieff, 2010). Os sistemas de classificação atual são menos controversos para condições clínicas marcadas por uma etiologia biológica conhecida, como nos campos da neuropsicologia, as demências, e nas disfunções moderadas e severas de aprendizagem.

De qualquer maneira, preocupações graves têm surgido a partir da medicalização do sofrimento e dos comportamentos de adultos e crianças (BPS, 2011; Conrad, 2007). Os diagnósticos “funcionais”, para os quais há evidências substanciais em favor dos componentes psicossociais determinantes para a etiologia, e para os quais há muito pouco suporte para um modelo patologizante, dão margem a um espectro mais amplo de concepções e posições e são o foco principal deste documento. Espera-se que este documento não seja lido como uma recusa do papel da biologia na mediação e habilitação de todas as formas de experiência humana, assim como do comportamento e do sofrimento humanos (Cromby, Harper e Reavey, 2013) – prova desse papel aparece, como exemplo, nas pesquisas recentes no campo da epigenética (e.g. Read e Bentall, 2012; Szyf e Bick, 2013). Reconhecemos a complexidade das relações entre os fatores biológicos, psicológicos e sociais. Em relação às experiências que dão origem aos diagnósticos psiquiátricos funcionais, conclamamos para uma abordagem que reconheça plenamente a evidência crescente do papel determinante dos fatores psicossociais, recusando a atribuição de um papel causal primário à biologia independentemente das evidências. Tal abordagem precisaria ser multi-fatorial, precisaria contextualizar o sofrimento e o comportamento, e precisaria reconhecer a complexidade das interações envolvidas, mantendo-se próximas aos princípios formulados na Clínica Psicológica (DCP, 2011).

O papel dos psicólogos clínicos

            Independentemente de os diagnósticos psiquiátricos se referirem a uma condição com uma base biológica primária ou não, há claramente um papel demarcado para a atuação psicológica na avaliação, formulação e desenvolvimento de intervenções em direção aos fatores psicossociais, considerando as influências e contribuições dos elementos biológicos envolvidos. O mesmo vale para a psicologia aplicada à saúde, em que o papel dos psicólogos se estende desde a identificação, formulação e finalmente o delineamento de intervenções pertinentes em relação aos fatores bio-psico-sociais que podem predispor ao adoecimento físico e que podem influenciar decisivamente em seu curso, progressão e impacto.

As razões para uma mudança de paradigma

            A presente declaração delineia as razões para uma mudança de paradigma e recomenda elementos para que se desenvolva uma nova abordagem. A expressão “diagnóstico psiquiátrico” será usada como um atalho para o esquema atual de classificação dos diagnósticos funcionais. Os principais aspectos conceituais e preocupações podem ser resumidos da seguinte forma:

Questão fundamental 1: concepções e modelos

  • Interpretação apresentada como fato objetivo: diagnósticos psiquiátricos são comumente apresentados como a apresentação objetiva de um fato, mas são, em essência, um julgamento clínico baseado na observação e interpretação de comportamento e auto-relato, e portanto trata-se de diagnóstico sujeito a viés e variação (e.g. Kirk e Hutchins, 1994).
  • Limitações em validade e confiabilidade: como consequência do enunciado acima, diversas críticas testemunham os problemas resultantes em validade e confiabilidade, e essas questões emergiram uma vez mais durante o desenvolvimento do DSM 5 (Bentall, 2004; Frances, 2012; Kirk e Hutchins, 1994).
  • Restrições de  utilidade clínica e funções: as limitações mencionadas restringem a utilidade de diagnósticos funcionais para fins como a determinação de intervenções, o desenvolvimento de orientações de tratamento e desenvolvimento de pesquisas baseadas nessas categorias.
  • Ênfase biológica: a dominância de um modelo de doença físico minimiza os fatores psicossociais com papel causal no sofrimento, na experiência e no comportamento das pessoas, ao mesmo tempo em que infla excessivamente as intervenções biológicas como a medicação (Boyle, 2013; Cromby e Harper, 2013).
  • Descontextualização: os diagnósticos psiquiátricos obscurecem as relações entre as experiências, o sofrimento e o comportamento das pessoas, por um lado, e seu contexto social, cultural, familiar, pessoal e histórico, por outro.
  • Viés etnocêntrico: os diagnósticos psiquiátricos são marcados por uma visão de mundo Ocidental. Como tal, há evidência de que é discriminatório em relação a uma diversidade imensa de grupos negligentes de aspectos como a etnicidade, sexualidade, gênero, classe, espiritualidade e cultura (e.g. Bayer, 1987; Busfield, 1996; Fernando, 2010; Shaw e Proctor, 2005).

Questão fundamental 2: Impacto nos usuários de serviços

As necessidades dos usuários de serviços deve ser central em qualquer sistema de classificação. Usuários de serviços expressam uma ampla gama de concepções quanto ao diagnóstico psiquiátrico, e o DCP reconhece a importância de se demonstrar respeito a suas perspectivas. Alguns usuários de serviços afirmam que diagnósticos são úteis para por um nome em seu sofrimento e assisti-los na compreensão e gerenciamento de suas dificuldades, enquanto para outros a experiência [de receber um diagnóstico] é de negatividade e dano. Algumas questões-chave incluem:

  • Discriminação: pesquisas demonstram que discriminação devido a atitudes sociais negativas em relação àqueles com um diagnóstico psiquiátrico. Isso pode gerar exclusão social (Read, Haslam, Sayce e Davies, 2006).
  • Estigmatização e impacto negativo na identidade: a linguagem das “desordens”, “transtornos” e “déficits” pode definir negativamente a postura de uma pessoa em direção à vida, à sua identidade e à sua auto-estima (Barham e Hayward, 1995; Estroff, 1993; Honos-Webb e Leitner, 2001).
  • Marginalização do conhecimento de experiência de vida: usuários de serviços enfatizam frequentemente a significação de aspectos práticos, materiais, interpessoais e sociais de suas experiência, que constituem quando muito papel subsidiário ou “favorecedor” no sistema atual de classificação (Beresford, 2013).
  • Tomada de decisão: decisões sobre como se pode classificar a experiência e o comportamento de uma pessoa são constantemente impostas como um fato objetivo, ao invés de ser compartilhadas de maneira transparente e aberta. Por exemplo: o desacordo de usuário com seu diagnóstico pode levar o profissional a rotulá-lo como “resistente” ou “sem insight”, demonstrando a recusa em reconhecer as limitações do sistema atual de classificação (Terkelsen, 2009).
  • Desempoderamento: o sistema classificatório atual coloca os usuários de serviço como necessariamente dependentes de conselhos e tratamento especializado, o que pode ter como efeito o desencorajamento de que tomem escolhas e posições quanto a sua recuperação e ao delineamento de formas de cuidado. Muitos relatos de recuperação da saúde incluem uma rejeição do diagnóstico (Bassman, 2007; Deegan, 1993; Longden, 2010; May, 2000).
  • Como referido acima, os diagnósticos podem levar a uma super-dependência na medicação, enquanto se subestima o impacto de seus efeitos físicos e psicológicos (Moncrieff, 2008).

 

Resumo

            O DCP acredita que há uma racionalidade clara e que há necessidade de uma mudança de paradigma em relação aos diagnósticos psiquiátricos funcionais. Posicionamo-nos em prol de uma abordagem multi-fatorial, que contextualize o sofrimento e o comportamento, e que reconheça a complexidade das interações envolvidas na experiência humana.

Pontos de Ação a partir da Declaração de Posição

Ponto de ação 1:

            Compartilhar internamente ao DCP, através do treinamento pré-qualificação e pela formação profissional continuada, os aspectos levantados por essa declaração. O objetivo é alcançar maior abertura e transparência sobre os usos e limitações do sistema atual, e aprimorar a atenção e a compreensão desses pontos pelos usuários de serviço e pelos profissionais de serviços.

Ponto de ação 2:

            Encetar diálogo com organizações parceiras, usuários e profissionais de serviço, agências voluntárias e outros corpos profissionais de forma a construir formas compartilhadas de avanço. Isso incluiria necessariamente a garantia de acesso à saúde, ao cuidado social, benefícios, apoio no trabalho, e a serviços educacionais e legais que são atualmente baseados no “porte” de um diagnóstico.

Ponto de ação 3:

            Dar apoio à construção, conjuntamente com usuários de serviços, no desenvolvimento de abordagens contextuais e multifatoriais que incorporem fatores sociais, psicológicos e biológicos.

Ponto de ação 4:

            Assegurar que uma perspectiva psicossocial e que um trabalho psicológico sejam incluídos nos arquivos eletrônicos de saúde.

Ponto de ação 5:

            Para que o DCP continue a promover o uso da formulação psicológica como uma das múltiplas respostas às preocupações elencadas nesta declaração.

 

 

References

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[1] DCP é a Divisão de Psicólogos Clínicos, a organização profissional dos psicólogos clínicos atuando no Reino Unido. O DCP representa mais de 9500 psicólogos clínicos e é a maior organização social de psicólogos da Grã-Bretanha. O DCP é dirigido por comitês eleitos nacional e regionalmente.

 

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