Postei há pouco tempo uma crítica ao DSM 5 publicada por uma associação de psicólogos clínicos britânicos. Quis traduzir esse texto, tão marcado por sua inscrição regional e corporativa, porque ele me parece representativo de uma confrontação pertinente das problemáticas relativas aos manuais diagnósticos em psiquiatria. A pertinência desse texto, no caso, é justamente o que limita sua pertinência aqui – outro país, outra região, outras questões e corporações. Se traduzi e se compartilho e se recomendo a leitura desse texto, é porque gostaria de ver grupos e associações no Brasil atuando com o mesmo rigor, a mesma contundência (até um pouco mais, no caso) e o mesmo poder propositivo.
É claro que tem muita gente trabalhando, trabalhando muito e trabalhando seriamente nesse contexto; o que espero, e esperarei sempre mais, é que as críticas se articulem, que sejam marcadas pela pertinência (inscrição da crítica no contexto contemporâneo brasileiro e todas suas peculiaridades), pela propositividade (acho que a palavra não existe, mas deveria existir) e pela contundência. Espero um dia entrar na internet e encontrar um texto redigido por um grupo coeso, articulando intimamente uma leitura rigorosa dos manuais criticados a uma análise crítica das razões porque esses manuais não ajudam a saúde pública brasileira e a saúde dos brasileiros, e enumerando medidas e propostas a partir das quais seria possível trabalhar para uma mudança nesses determinantes considerados ruins para nosso contexto. Confesso, sem pudor nem vergonha, que ainda não fiz a sugerida leitura crítica do DSM 5, mas espero que as pessoas que o têm criticado se dêem ao trabalho de ler, e de compartilhar com o grande público por quê esse manual é ruim.
Queria ainda reiterar uma posição que já enunciei antes: posso estar enganado, mas até onde vejo o Brasil é muito mais prejudicado pela adoção acrítica do CID-10 na normalização e formalização de práticas de saúde mental do que pelo DSM-IV ou 5. É claro que um influencia o outro, mas pelo que sei o SUS (incluindo a saúde “suplementar”) se funda nos diagnósticos oferecidos pelo CID-10, e não no DSM. Se de fato é assim, e se de fato são os diagnósticos do CID que são usados de forma prejudicial ao andamento favorável do SUS, então me parece que por aqui a crítica ao CID-10 deveria ser a questão maior orientando o trabalho daqueles que compreendem que essa crítica é condição para a construção de uma saúde mental pública diferente e melhor. Posso estar enganado, e se estiver espero que alguém me corrija e indique um caminho melhor de pensamento.
No mais, espero que a declaração que compartilhei nos inspire, não como colônia a replicar indiscriminadamente proposições das “grandes potências”, mas como pensadores atentos articulando o que se produz de melhor em benefício da instalação de potência crítica e criativa em nossas áreas de atuação. Vejo muito sentido na crítica que os redatores da declaração britânica fazem quanto ao acento organicista dos manuais, e da consequente ênfase excessiva em tratamentos de base medicamentosa ou de intervenção orgânica; e acho que aqui no Brasil, e considerando os princípios do SUS, esse tipo de organização é certamente muito prejudicial e creio que faz muito mal à população (pensemos, por exemplo, na nefasta articulação de um princípio organicista e medicalizante de atuação em saúde a uma estratégia como a da saúde da família); vejo também muito sentido na ênfase propositiva que dão à difusão do pensamento condensado na declaração nas instâncias de formação profissional e de formação continuada de profissionais.
Em resumo, espero que possamos produzir no Brasil engajamento transdisciplinar (diferentemente do que se evidencia na declaração britânica que compartilhei, que é corporativa e específica), pertinente, contundente e propositiva.