Na última terça-feira, 7 de maio, o ministro da Saúde Alexandre Padilha anunciou o projeto do governo federal para a contratação de médicos estrangeiros para atuação nas áreas desassistidas do país. O projeto faz parte do programa Viver sem fronteiras, do governo federal.
A repercussão do anúncio foi grande, e muito rápida. Dois dias depois, 9 de maio, já se encontram na internet muitas matérias; o curioso é que essas matérias não são propriamente sobre a proposta do Ministério, mas sim do posicionamento enfático dos Conselhos de medicina repudiando vivamente a proposta[1].
Independente dos médicos enquanto pessoas, e independente da centralidade de seu trabalho para a vida das pessoas, o posicionamento corporativo médico tem me chamado atenção de maneira muito negativa. A contundência, a virulência e a parcialidade dos ataques à proposta do Ministério me chocou, e uma vez mais me vi irritado com a parcialidade do posicionamento da categoria. Confesso que, como psicólogo, sou marcado indelevelmente pelos slogans e mantras das outras categorias da saúde contra o famoso ato médico e outras iniciativas de centralização; confesso que, em virtude dessa bagagem de minha formação, provavelmente sou um pouco enviesado em minha leitura das situações que envolvem essa problemática. No entanto me parece evidente que uma avaliação com a “delicadeza” da nota de repúdio veiculada pelo Cremesp parte do puro ataque e da hostilização, e rejeita de partida o diálogo com a população, o amadurecimento dos debates e a construção de saídas interessantes para as encruzilhadas da saúde pública no país. Cito, por exemplo, uma passagem particularmente ressentida da dita nota de repúdio: “Tal iniciativa, se por um lado resolve o problema de seis mil cubanos desempregados, passa longe de atender as necessidades de saúde da população brasileira”.
Outro ponto digno de atenção – e esclarecedor quanto aos princípios do posicionamento – é o próprio subtítulo da matéria no site do Cremesp, em que se lê: “Cremesp repudia entrada de médicos estrangeiros sem revalidação de diploma e pode entrar com ação judicial contra proposta”. Bom, de início a matéria baixa o nível da argumentação, na medida em que se funda em uma absoluta inverdade, que seria a não revalidação de diploma – pelo que li através do Twitter de Alexandre Padilha e pelo Blog da Saúde, desde o anúncio da proposta no dia 7 estava clara a exigência de revalidação do diploma e a instalação de processo seletivo para que fossem contratados profissionais que comprovassem competência. No limite do insuflamento retórico a nota afirma que o Cremesp pode protocolar ação na justiça contra a medida porque ela “coloca em risco a saúde da população”.
Mais uma vez, o que mais me chama atenção não é a parcialidade das análises, nem a baixeza das distorções oportunistas. O que me choca é a cegueira recíproca e a lavagem cerebral consentida na formulação das “informações”; o que me choca é a contundência e “superioridade” de cada uma das partes quando apresenta seus argumentos a seus pares; o que me choca é que os argumentos sejam fabricados para a anuência dos pares, e não haja movimento perceptível de confrontação entre os divergentes; o que me choca, acima de tudo, é que as “informações” e o debate sejam conduzidos de forma amadora e infantil e as decisões, que decidem o andamento das políticas públicas de saúde no Brasil, sejam baseados unicamente na queda de braços de interesses escusos na calada da noite dos bastidores das instâncias decisórias.
Frase comprida essa última, não? Pois é aí que fica o coração da coisa, por isso desmonto o argumento em doses homeopáticas. A veiculação da notícia, e o debate, acontece em “salas” privativas – quem concorda com a contratação lê matérias na Carta Capital, no Blog da Saúde, nas páginas dos conselhos não-médicos de saúde[2] etc, quem não concorda lê no Estadão, no site dos conselhos médicos etc; quem debate o assunto “desabafa” perante pessoas que pensam como ele, e encontra pouca ou nenhuma resistência, antagonismo, convocação ao pensamento criativo; as “informações” enviesadas e mesmo falsas vão ganhando força e ênfase até virarem alarmismo e profecia de tragédia, baseadas na distorção. Paralelamente a isso (e quase estranha a isso) a discussão decisiva se passa na negociação dos interesses, na força das bancadas e no “poder de influência” das partes envolvidas na tramitação dos projetos – quem quer influir na decisão que mobilize seus poderes e capitais para “manejar” as instâncias na direção desejada.
Não me considero um democrata ingênuo, nem defendo a restauração da velha ágora ateniense; o ponto que me incomoda é a parcialização do acesso às informações pela “personalização” das notícias a que se tem acesso, a discussão em guetos e, paralelo a isso, a tramitação incólume de um processo escuso de negociação, sem o engajamento efetivo de tantos “militantes” e “defensores” de opiniões que só militam e se defendem em meios fechados.
Há, bem o sei, exceções; exemplo notório, nesse caso em particular, é o blog do Luís Nassif, que veicula opiniões diversas e contempla setores bastante heterogêneos entre os leitores e comentadores. Como todo blog, o do Nassif divulga posições e toda posição tem lá sua parcialidade, mas parece um foro de discussão abrangente e aberto.
Enfim, como profissional envolvido e interessado no campo da Saúde Pública, considero esse caso mais um triste exemplo da hostilidade e da arrogância com que os conselhos representativos da categoria médica conduz suas políticas diante da população e do poder público. Se, por um lado, os médicos configuram elemento central na configuração de uma saúde pública consistente, por outro me parece desprezível a forma como as instituições corporativas abrem mão da função da profissão em benefício dos privilégios, dos ganhos pessoais dos profissionais e da salvaguarda de mercado. Médicos, como todos cidadãos e todos profissionais, merecem respeito, dignidade, condições adequadas de trabalho e reconhecimento – isso não habilita as instituições corporativas (nem médica nem nenhuma outra) a sabotar processos democráticos, a mentir e caluniar em defesa de interesses, a por em xeque a saúde pública em nome desses direitos.
Seguem links para os interessados nas matérias que repercutem as iniciativas do Ministério da Saúde e dos Conselhos médicos:
Blog do Luís Nassif (com bravatas e acusações partindo de partidários de diversos lados): http://advivo.com.br/blog/luisnassif/a-questao-da-vinda-dos-medicos-cubanos-para-o-brasil
PDF do Jornal de Medicina do CFM em que consta uma repercussão (dispersa entre as páginas 6 e 8) enviesada e curiosamente ambivalente do papel do Conselho na Defesa dos médicos e/ou do SUS: http://portal.cfm.org.br/images/stories/JornalMedicina/2013/jornal218.pdf;
Nota (caluniosa e parcial) do CREMESP repudiando a proposta: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=2859
Matéria (relativamente ponderada) da Carta Capital sobre o tema: http://www.cartacapital.com.br/saude/medicos-estrangeiros-que-atenderiam-comunidades-carentes-sao-reprovados-em-exame-do-cfm-1
Apresentação da proposta do Ministério no Blog da Saúde (com tom curiosamente apologético em relação ao que seriam as acusações das categorias médicas logo a seguir): http://www.blog.saude.gov.br/nao-se-faz-saude-sem-medico-diz-padilha/
Como mencionei, os Conselhos regional e federal de Psicologia não emitiram notícia nem posicionamento.
Conclamo, ainda outra vez: quem tem posições contundentes, quem tem bravatas, quem concorda ou discorda, evite restringir-se aos grupos de identificação e adesão.

Gostei do texto! E fiquei viajando um pouco:
É, parcial, toda e qualquer afirmação ou análise sempre será. Ainda bem, problemático seria se algum discurso fosse total – a um passo do único. Porém, o que incomoda é o debate público sendo privado, fechado, que só quem concorda converse entre si (pensei na discussão dentro apenas de categorias, apenas entre supostamente iguais). Onde cabe a divergência? O conflito? E os discursos que buscam a abertura tem sua circulação “fechada”. Como fazer circular? Não acho que se trate só de afirmar “diferenças”, concordo muito com o Zizek não podemos parar as questões nesta temática (que logo leva a crer na “tolerância”, também nada se movimenta) e tratar tudo como se fosse essa “A” questão, escamoteando as múltiplas implicações. De qualquer jeito, acho importante lembrar da potência do conflito, das trocas, do embate de opiniões e atos.
Ei! Que legal teu comentário! Acho bem interessante tudo que você coloca, e acho que essas preocupações tocam bastante as minhas. O Zizek, não conheço de perto e sou suspeito para falar, mas acho que na fanfarronice dele ele flerta um pouco além da conta com a imposição de um sistema pela força – a mim não me agrada, eu prefiro as violências corrosivas a essas de tom maoísta – mas enfim, as problematizações quanto à tolerância faz todo sentido na minha cabeça.
Detalhe: acho que por uma série de deslocamentos teu comentário me convocou a um outro texto, bem heteróclito, que vou postar já, já, veja lá o que acha!