http://www.youtube.com/watch?v=RRMz8fKkG2g
Piano Toco virava, só, na cama, dormiria ainda; mas a luz da cozinha pegou seu olho que piscava, coisa boba de sono leve, e tirou Toco dos braços do esquecimento. A perna tinha fugido da manta, e estava fria; o braço direito estivera por tempo demais preso debaixo do corpo, e mesmo o magro corpo do Toco pesou demais no magro braço, que agora doía.
E Toco teve sede, sede de sair da cama, sede de ver o que se passava na cozinha, sede de não ter acordado e poder dormir até a iminência das andanças do dia, sede. Jogou-se de lado e sentou-se na cama num muxoxo. Piscou e piscou, remelas prendendo os olhos, não olha o mundo não, remelas do desencanto, coçou os olhos, o mundo mais duro, firme agora. O quarto magro de pertences, a vida escapada do quarto, o que tinha acontecido mesmo?, ah, a sede, a luz, a cozinha, a água. Enche o pouco de peito que tem com o ar que cabe, levanta num suspiro. Da porta divisa a mãe sentada como quem deitaria se pudesse, o corpo entregue à sorte da cabeça pendurada na mão apoiada no braço fino jogado na mesa, na mesa a toalha de São João, setembro agora. A mão livre da mãe brinca com os farelos do pão comido do dia anterior, prestes a receber a companhia dos novos farelos dos pães comidos no dia que cria coragem de nascer a qualquer hora, deve ser quatro, cinco agora? Mãe triste, triste, que foi, mãe? Que foi, mãe?, e a mão coça os olhos tirando as desencantadas remelas já tiradas, emulando o acabou-de-acordar que já passou de uns minutos antes.
Mãe se assusta, passa a mão no rosto, funga comprido; mãe tá triste, triste, mãe.
Forzato A interiorana afetiva vida de Rosa. Rosa, dos olhos azuis, dos vestidos de bolinha, Rosa da profundidade dos olhares inocentes e sagazes dos encontros da verdade que se impõe sem violência, mas com firmeza, ah! com firmeza, Rosa e a interiorana afetividade de uma vida sofrida em tons menores, no idílio dos recônditos esquecidos do progresso, nas terras do além-de-deus-pai, nas trevas brutas da animalidade dos homens dos anacronismos sertanejos da poesia campestre e rude de uma rabugenta vida-como-ela-é
Pianissimo, crescendo Rosa. À mesa, os pés descalços, o vestido puído às vezes de pijama. A noite, a luz acesa. Rosa. Rosa e o silêncio. Rosa.
A janela pipoca em estilhaços a luz branca do poste, iluminando ninguém, enchendo de sombras a rua esquecida dos caminhos dos homens. A luz branca marcando na rua a iminência dos passos dos homens de bem, voltando bêbados, sofridos, marcados pela brutalidade da verdade imposta pela abundante, pela ecumênica, pela impiedosa aguardante do Senhor. Rosa pouco olha a branca luz do poste da rua, Rosa imersa no vazio de si refletido nos farelos de pão à junina mesa.
Rosa, as pétalas sofridas da rosa divisando o vazio de fora e o vazio de dentro, na vida do vazio de dentro a história da vida da Rosa, que de tão pouco, de pele escassa e ossos fracos separa o vazio da casa do vazio da Rosa, vazios tão diferentes que, se pudessem, doíam.
Se vazio doesse, doía menos. Marcada do vazio do pensamento, Rosa sofre sem cor, sofre puída de vestido puído, Rosa junina num setembro que não amanhece nunca.
Forzato Mãe? Que foi, mãe?
Piano Toco, acordou, Toco? A mãe pega uma água, senta, Toco, senta. Não dormiu, mãe? Dormi, filho, acordei agora mesmo, era sede em mim, também, sentei a ver a chuva, quem sabe seu pai chega, pensei até em fazer café. Quer café, Toco? A mãe faz.
Pai foi no Chiqueiro, filho. No Chiqueiro dos Homens, o boteco do Senhor. Vendeu aquele bicho-boi esquisito, aquele da Holanda ou da Europa sei-lá-eu, resolveu fazer festa com o gado que sobrou na mão proprietária dele, pai está lá. Pai é gente de bem, Toco, pai volta já.
Toco sabe da tristeza da avó? Nem conheceu a avó, foi, Toco? Mãe viveu com seus avós até treze anos, antes de conhecer o pai, avó comeu o pão que o diabo amassou, Toco, vida de mulher sofredora. Avó dizia pra mãe, Rosa não abaixa a cabeça, Rosa, pelo amor de deus pai, Rosa seja forte, Rosa seja brava, Rosa pisa a terra, Rosa morde o rabo. Avó tinha oi cabelo em coque, agulheiro desfiado no alto da cabeça, limpava a casa de sol a sol como quem atrasa para a missa, a passada corrida, o olho estalado, avó sofria que só, sabia, Toco? Avô era homem duro, estúpido, homem de medo, homem de dor. Pai, não, não é, Toco?, pai é homem bom, gado manso, bom de correr, bom de pasto, gado de corte.
Toco. Estuda, viu, Toco? Estuda, aprende, se comporta, faz o que deve e o que não deve. Luta, luta e faz de bravo, que se a gente não doma a vida a vida doma a gente.
Mãe tá bem, mãe?
Bem, sim, Toco; triste só, mas bem. A gente é forte, e luta, e pega o bicho pelo chifre, e quando vai ver foi palhaço na arena dos outros; a gente tem que pegar pelo chifre o corno certo, lembra disso.
Se eu lembrar, mãe, será que um dia eu entendo?
Não sei, filho. Sei que um dia a gente morre, o resto é a mão de deus, o rabo do diabo e a cabeça de quem pensa. Vamos dormir? Já que seu pai chega, e homem de bem não quer circo armado quando chega de fogo, hoje dorme ele abraçado na vergonha e amanhã a gente põe os panos de enxugar as goteiras.