Impasses em nome da pertinência na pesquisa universitária
Por alguns anos fiz parte de um grupo de pesquisa em um laboratório da USP, formado por pesquisadores da Psicologia e da Filosofia. O projeto, inicialmente, tinha por propósito configurar uma espécie de manual de psicopatologia ancorado em bases distintas daquelas em que se ancora o DSM – DSM que diz não se ancorar em lugar nenhum que não na fenomenologia da clínica.
Eventualmente minha vida tomou outros rumos e deixei de fazer parte do laboratório; hoje sinto que o próprio laboratório tomou outros rumos, ou eu que nunca entendi muito bem o projeto. Sei que desde essa época (entrei para o laboratório em 2008) me envolvo de uma forma ou de outra com essa problemática da relação entre o DSM e a psicanálise, que se resume basicamente às diferenças de princípios quanto à fundamentação de um manual de princípios da clínica psiquiátrica. Fui colecionando algumas divergências em relação à forma como a discussão é conduzida no Brasil de forma mais ou menos geral, e acho que seria oportuno compartilhar essas divergências com quem me lê.
Primeiro esclareço ao grande público: o DSM é um compêndio que formula os princípios diagnósticos para as doenças de saúde mental, formulado pela Associação dos Psiquiatras dos EUA. A primeira edição foi lançada em 1952, e desde então sua importância no cenário da saúde mental só tem crescido. Já a CID (ou CID-10) é a Classificação Internacional de Doenças, organizada e publicada pela Organização Mundial de Saúde; encontra-se em sua décima edição e é editada desde o fim do século XIX (as datas de “nascimento” da CID variam de acordo com os critérios do pesquisador, mas gira em torno de 1893). Há quem diga que a CID (que é o documento oficial, supra-nacional) atualmente é amplamente inspirada e dependente do DSM e que por isso o “inimigo de verdade” seria o DSM, embora seja bastante plausível que a convergência dos critérios se deva ao fato de que a fundação dos protocolos de confecção do DSM seja politicamente eficiente e incisivo a ponto de encontrar reverberação nos organismos supra-nacionais. A diferença é que a leitura “um nasce do outro” situa um pouco o CID como estrela da morte e o DSM como o verdadeiro Darth Vader, e a segunda sugere que os dois documentos refletem os desígnios da metrópole sobre suas colônias (que no caso seriam as associações nacionais, os congressos, conselhos, hospitais e finalmente os consultórios dos psiquiatras).
Antes de mais nada, acho ruim do ponto de vista estratégico que as mobilizações e questionamentos se dirijam ao DSM e não ao CID. É claro que há boas razões para essa escolha, mas acho que no Brasil o CID precisa ser chamado ao debate, e mais emergentemente.
Me dedico primeiro ao que vejo como boas razões em relação ao DSM para depois me dedicar aos meus argumentos. Acredito que o DSM seja um bom adversário porque ele é criticado internacionalmente, e o projeto de confecção de sua quinta edição (os rumores de que ela estava “para sair” vêm desde antes de 2004 e ela ainda não foi oficialmente lançada ainda) atiçou os ânimos de gente ao redor do mundo. Por isso um laboratório de pesquisa que estuda, critica e questiona o DSM tem mais garantia de cooperação, atenção e destaque. Do outro lado do mesmo ponto, criticar o CID configura um gesto mais imprudente e temerário para um laboratório de pesquisa universitária, considerando que esse tipo de laboratório depende de financiamento com dinheiro público – criticar o CID, empregado pela legislação e pelo SUS, é de alguma forma criticar o chefe.
Tenho a impressão que esses componentes são relativamente decisivos quando se elege como “inimigo” ou como entidade criticada o DSM e não o CID. De minha parte, insisto que o verdadeiro foco de atenção para as pesquisas, a crítica e o questionamento deve ser o CID, particularmente no Brasil. Digo isso porque o CID regula todo o funcionamento do SUS, incluindo as empresas de “suplementação” (convênios médicos e afins), o que no fundo significa que o CID é o dicionário e o compêndio que regula a comunicação no mundo da saúde no Brasil. Se a pesquisa se pretende pertinente e se pretende contribuir para o desenvolvimento e a superação de impasses no Brasil, o CID é uma questão de frente, e o DSM é uma questão lateral (ao menos iminentemente).
A partir dessa divergência de base derivam outras, que têm papel mais acessório. Acredito que se os laboratórios de pesquisa universitária devotassem atenção aos protocolos do CID, aos seus problemas e impasses, acredito que teriam mais condição de chamar ao diálogo profissionais atuando na saúde, partidários do modelo CID e opositores; isso daria mais pertinência e mais efetividade ao debate. Se os médicos que atendem nos postos de saúde e hospitais do Brasil emitem milhões de diagnósticos ancorados no CID e nenhum baseado no DSM (ao menos não para documentos e protocolos), acredito que se interessariam mais em um debate sobre o CID do que sobre o DSM.
Além disso acredito que a composição de um programa de pesquisa em torno do CID, e não do DSM, permitiria aos grupos de pesquisa ancorar suas pesquisas mais profundamente no panorama da saúde mental brasileira, conforme esta efetivamente acontece e conforme acontece hoje. Na prática, hoje, o CID é o companheiro de maleta do profissional de saúde, e o DSM é, quando muito, o adereço de prateleira ou o “philosophical guide” – o pesquisador vai ter dificuldades imensas para construir pesquisas se valendo do DSM, ao passo que o CID é exigido em cada ato clínico oficial no território nacional. Assim, trazendo o CID para o plano de frente, fica mais viável produzir pesquisas condizentes com a realidade e o panorama atual da saúde mental no Brasil, o que certamente aumentaria o interesse e a pertinência da produção nacional, seja para o debate acadêmico internacional no campo, seja para o desenvolvimento de propostas de amadurecimento de políticas públicas aqui mesmo, no Brasil.
Enfim, apresento essa minha discordância que no fundo posso resumir ao seguinte: mesmo em tempos de internacionalização de pesquisas universitárias, mesmo atentos ao protagonismo da Associação americana no delineamento de políticas internacionais, me parece que o ancoramento decidido dos programas de pesquisa na realidade das práticas nacionais é o caminho para o amadurecimento do debate e para a construção de programas de pesquisa efetivos e bem-sucedidos, nacional e/ou internacionalmente.