A branca página

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

– Fernando Pessoa, “autopsicografia”

 Respeitoso aos seculares princípios de nossa ordem, desde o início de minha contribuição literária a tão dileto grupo observei discrição absoluta quanto às vicissitudes cotidianas de minha existência, tecendo minhas crônicas sem arroubos de pessoalismo ou esgares oblíquos à minha intimidade. Hoje, no entanto, completos vinte e cinco anos de minha contribuição e em vista da singularidade do momento que atravesso, assumo a primeira pessoa do singular, esperando somente que a suspensão que imponho aos princípios ordenadores de meu papel na ordem sejam compreendidos e perdoados ao cabo de minha comunicação.

  Jamais poderei agradecer  devidamente à ordem pelo imenso privilégio de ser partícipe de suas fileiras e gozar do imenso prazer e conforto da posição de escrevente e mensageiro. Bem sei, enquanto membro da ordem, que agradecimentos e pessoalidades não são dignas, e por isso mesmo não se fazem oportunas no seio da ordem; a Vida me abençoou com lampejos de uma compreensão nova sobre as coisas, no entanto, e é banhado por essa luz que me apresento de um ângulo inédito em todos os vinte e cinco anos de apresentação semanal.

  A ordem marcou minha vida desde seu mais tenro princípio; ainda neófito na arte escrita fui recebido em meio à ordem, dignificado com a tarefa de circular semanalmente, sem atraso e sem oscilação, textos literários puros – hoje rompo esse fio que atravessa minha vida, semana a semana, indelével, infalível. Pela primeira vez escrevo algo com um propósito de autor, e o próprio texto sacramenta minha plena ciência de que quebro o juramento, desfaço o ciclo: a partir de hoje não mais escrevo à ordem textos belos.

  Há um mês sou avô (sinto repulsa, a despeito de mim mesmo, ao escrever assim; que a Eternidade me compreenda, e me perdoe). De início não suspeitei que o comezinho fato pudesse alterar em algo meu juramento – como sempre fiz continuei a acordar pelas manhãs, tomando meu desjejum na sala e trancando-me à chave na biblioteca, onde dispunha-me, sem pressa ou sofrimento, a compor as pequenas obras que às quintas-feiras, às sete horas, estariam nas casas de todos membros da ordem. Como sempre continuei a escrever anônimos textos sobre nada; como sempre continuei a fiar minha existência no fuso do tempo, com o fio do tempo, cosendo a quietude de onde vim, e por onde passei, e aonde ao fim e ao cabo descansaria, em paz.

  Provido pela ordem com todos os recursos e provimentos que se me fizeram necessários ao longo de todos esses anos, naveguei pelos anos como pura testemunha da beleza, como artífice da beleza, como ilusionista da beleza: testemunha da beleza pela oportunidade primorosa de estar tranquilamente à parte, à sombra, absolutamente desprovido de desejos insatisfeitos e futilidades intempestivas; artífice da beleza pelo contínuo ofício de coser textos sobre nada, textos que convidassem à sublime apreciação do ritmo e da entonação, textos suaves como seda, e igualmente leves e puros; ilusionista da beleza na valorosa incumbência de menestrel da ordem, responsável pelos ânimos e disposições dos confrades.

  Teria prazerosamente vivido e morrido assim, como uma estrela cadente que passa e brilha e morre sem ser vista por ninguém; tal idéia jamais produziu em mim angústia ou auto-indulgência nenhumas. A Providência, no entanto, opera com artifícios imperscrutáveis, e não sem espanto fui interpelado pela progênie que desconhecidamente para mim aspiravam por minha presença. Encontro-me, pois, convocado pelas circunstâncias a ser um, a ser – com o que privo-me da voz vazia que entoei ao longo desses anos.

  Em tempos idos, ainda jovem, tinha por hábito lançar-me em meio às ruas abertas, ao sabor dos ventos e das massas – meu corpo e meus desejos ainda precisando de uma pacificação ativa em meio à massa, o apagamento de si tendo de ser impulsionado pelo apagamento de si vivido em meio aos muitos.

  Echarpe no pescoço, luvas calçadas, sentava-me em uma mesa de café na calçada e acendia um cigarro. O tempo consumia quase todo o cigarro apoiado ao cinzeiro; o vento consumia quase todo o café, que resfriava intocado sobre a mesa. Meu olhar folheava as multidões em sua dança, a dança da vida, da vida anônima que se vive nas carnes provisórias dos homens e suas singularidades. Perscrutava as idiossincrasias – todas tão precárias – impondo cortes e sulcos no correr da vida, no viver da vida. O casal a flanar suas pedestres alegrias, tão enfatuadas pelos significados específicos que lhes conferiam, a individualizar a alegria que a ninguém pertence. Ao pé do cigarro frio e do café frio eu, aquecido pela echarpe e as luvas, vivia as vidas dos viventes, tão ocupados em si que deixavam-se passar ao largo do que em si vivia e pulsava.Tempos idos, esses, em que aprendi a verter-me em verso em prosa, viver-me no anônimo da tinta preta sobre o papel branco. Aprendi a escrever como ninguém, para ninguém. Aprendi a ser feliz sem sê-lo carnalmente.

  Com o suave sopro do vento frio a refrescar-me caminhava em meio às ruas, ciente do ar que respirava, do tempo que durava, do pulsar das luzes da cidade; o estar ciente da vida conduzia-me através das intempéries de um corpo ainda jovem e sedento de intensidades, intensidades que cavalgava intrepidamente, eu mesmo indômito em minhas inventividades desesperadas, desgarrado como ainda era então. Lembro-me com estranhamento do esforço para publicar artigos falseados em jornais pequenos, para encontrar meios de subsistência, um selvagem na cidade selvagem.

  Fui feito para a ordem; maior e anterior como é, de alguma forma a ordem também foi feita para mim, como a onda que retorna ao mar foi feita para a onda que se arremessa à praia. Todos fluímos, do nada que somos ao nada que seremos, do nada de onde viemos ao nada onde iremos ao fim.

  A ordem fez de minha vida uma vida vivível.

  Fez de meus dias um algo como o sorriso complacente do artista diante de sua obra em plenitude.

  Hoje, ciente de minha condição ao limite de minha história, faço-me um diante da ordem, somente para apagar-me no momento seguinte. Tendo sido mar por vinte e cinco anos, por um momento sou um, sou onda, e morro na praia como se nesse momento único fosse todo o mar a banhar a praia.

  Despeço-me de meu lugar no seio da ordem para apagar-me na imensidão, estrela apagada no esplendor. Meus dias, de hoje em diante, serão fiados por mim, por algo na Criação que não eu mesmo; serei conduzido por meu neto pelas calçadas, conduzido por meus devaneios enquanto contemplar meu neto a brincar com meu filho, filho que há um mês conheço. Conduzido pela multidão quando flanar pelas calçadas em busca de pirulito, ou sorvete, ou um chapéu que combine com meu terno, ou um lugar para sentar. Café frio, cigarro apagado, a Ordem certamente correrá com seus olhos meus dias vertidos em pedestres alegrias, sublimes alegrias, sabendo que nada sou senão efêmera testemunha da vida a viver-se em mim e através de mim, eu a fazer-me vivo e vivente através dos azuis olhos de meu neto, paixão de meu viver.

  É com contida emoção e modesta reverência que me despeço de meus confrades, que ao longo desses vinte e cinco anos viveram-se pelos textos que leram,  preta tinta nas brancas páginas que fui. Apago-me enfim em efêmera chama, eterna enquanto dure.

2 comentários em “A branca página

  1. Me sentindo mar amei…mas amo também sem ser porque aprendi a ser amando…

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