O errante e o flaneur

Vocês que estão no palácio

Venham ouvir meu pobre pinho
Não tem o cheiro do vinho
Das uvas frescas do Lácio
Mas tem a cor de Inácio
Da serra da Catingueira
Um cantador de primeira
Que nunca foi numa escola

Pois meu verso é feito a foice
Do cassaco cortar cana […]

(Lirinha, Cordel estradeiro)

  A errância e os errantes surgiram na minha vida a partir dos textos dos intelectuais franceses dos anos 60; a passagem mais clara referente a isso é aquela dos Ditos e Escritos em que Foucault diz que a vida é erro etc etc. – tratava das idéias de Canguilhem no texto.

 A beleza da coisa está na reversão da conotação usualmente negativa do erro – costuma-se pensar que quem erra deixou de conseguir o que queria, porque tinha uma idéia e não pôde alcançá-la. Contra isso esse tipo de pensamento afirma que o erro é a raiz da vida humana e uma das fontes de liberdade para os homens; isso considerando, por exemplo, o errante, que não tem um destino nem um lar e – até por isso – tem uma grande liberdade para circular e viver. Posta essa reversão inicial, trata-se simplesmente de dizer que o mesmo vale para o erro no sentido performático/moral da coisa: quando eu erro no meu objetivo inicial eu de alguma forma acerto, no que diz respeito a outras possibilidades que eu até então não vislumbrava.

  Toda essa idéia aparece repetidas vezes entre os tais franceses, sob as mais diversas formas: o próprio Foucault com o erro e a errância, Deleuze com a matilha e a desterritorialização, Jacques Monod com o acaso, Bergson com o virtual…

 O ponto para mim – neste texto – é que na maioria destes casos a pauta de fundo é a perspectiva de mudanças na cena social, ou seja, a política. Nada contra, a idéia até me agrada; o que me intriga aqui é uma espécie de paradoxo que tem me chamado a atenção: se esta errância e esta abertura ao inesperado se calca na possibilidade de subversão da ordem posta e a possibilidade de instauração de novas formas de relação e de vida, não estaríamos de alguma forma tentando “desmontar” a imprevisibilidade por dentro e “empalhá-la” com expectativas de uma ordem determinada?

 Sei que a questão é confusa, mas no fundo trata-se de um ponto simples: quando a esquerda povoa os limites e o virtual, quando se dispõe a habitar as periferias e os erros, quando defende o inesperado, o criativo e o novo como “seus campos”, não estaria ela polarizando mais este campo da vida humana e engessando o que seria movimento? Se o erro é bom e o virtual é produzido e a periferia é investida, não estaríamos re-centrando, realinhando, reorganizando campos até então livres?

 Penso num ponto concreto, simples, como exemplo: o Errâncias, este blog pelo qual vos falo, funciona como laboratório de escritas; a idéia era muito essa de habitar os limites, experimentar novas formas de escrita, “errar” pelo campo da comunicação escrita etc etc. Curiosamente, no entanto, a recorrência (ou insistência) neste tipo de prática e a instauração de uma certa previsibilidade “centralizam” o que errante e novo e diferente. É como se o andarilho se desse conta que estivesse andando em círculos entre duas ou três cidades…

 E acho que é disso que se trata: a esquerda francesa viu em algum momento que a abertura para o novo encerrava um campo fértil para as transformações sociais e a mudança; sutil e continuamente o pensamento de esquerda “clássico” (hegemônico) vai se imiscuindo, se instalando, constrói suas barracas e templos e estátuas e totens – e de repente, não mais que de repente a periferia/matilha/deserto/errância vira praça pública com passeata sindicalista anti-ALCA e pró-revolução.

 Me irrita perceber em mim essa velha defesa dos velhos ídolos das velhas boas brigas dos bons pensadores; me irrita ver minhas periferias e meus movimentos de matilha virarem hipocrisias a disfarçar as defesas emboloradas dos direitos estabelecidos e das coisas que são corretas. Contra uma boa retórica enferrujada, quero uma nova retórica arriscada, ou uma velha retórica ruim por onde eu possa forçar pensamentos interessantes ou pelo menos curiosos.

 Aí eu pensei no flaneur. A problematização do flaneur pelo Benjamin, que é a primeira e a verdadeiramente cuidadosa (ao que me consta) eu nem conheço – li com pressa e sem interesse e faz tempo.  Conheço bem, por outro lado, as hordas de comentadores que destróem o flaneur como o burguês, o desimplicado, o ressentido, acomodado e tudo o mais – o flaneur acabou virando como que o avesso do barbudo comedor de criancinhas. Por outro lado – um lado mais interessante – o flaneur pode ser uma espécie de contraponto ao errante.

 Porque o flaneur habita o centro, as ruas largas das grandes metrópoles; porque ele se identifica na massa, no centro; porque ele não se incomoda com o burburinho e o presente e as coisas-como-estão.

 Não defenderia o flaneur, não chegaria a este ponto. Queria apenas sinalizar um incômodo, anotar um desconforto e apontas para a perspectiva de uma mudança retórico-postural: tenho me incomodado com a reiteração do mesmo sob a fachada do bem-dizer esquerdista; entre o errante enganado, que se diz limítrofe e contestador e revolucionário e que na verdade anda em círculos, entre ele e o flaneur, me interesso hoje pelo aprendiz de zen de “Arte cavalheiresca do arqueiro zen”. Me interesso pela calma desconstrução das camadas de tempo a pôr pó nas coisas, pela repetição que insinua o novo sub-repticiamente, pela diferença sutil anunciada no fundo borrado do dia-a-dia. Um flaneur irreconhecivelmente ciente de si; um errante curiosamente satisfeito com a própria memória e com a eventual aparição do mesmo; um solitário no olho do mundo.

 Menos de si – mesmo aquelas partes de si que se constróem à sombra dos grandes e belos discursos coletivos.

 Menos de si como bom esquerdista.

 Menos de si como bom lacaniano/winnicottiano/deleuziano.

 Menos de si como bom errante.

 A moça da padaria reclama do acidente de moto que causa trânsito na linha de ônibus e, sabendo ouvir errado, vê-se aí mais sabedoria do que nos muitos volumes dos sapientíssimos livros dos homens que muito sabem. Por não saber que sabe, ela sabe sem se preocupar com o verniz das idéias.

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