Sessões online em tratamento psicanalítico – algumas considerações básicas

As transformações nos modos de comunicação vêm se fazendo notar há um tempo no contexto da clínica psicanalítica, e isso vem de antes do coronavírus e antes mesmo da onda de pedidos de atendimento online. O celular, por si só, já tinha mudado um tanto a forma como pacientes se relacionam com seus analistas, e a chegada de smartphones e Whatsapp transformaram isso ainda mais. Eu, com meus escassos 11 anos de experiência clínica, pude assistir a todas essas coisas na minha própria práxis (o que dá uma dimensão de quão rápido as coisas estão mudando). Lembro de quando comecei a atender em consultório próprio e usava um telefone fixo “pai de santo” (já que eu tinha pouco dinheiro e não instalaria um telefone “normal”, recorrendo por isso a um pré-pago bem fajuto), e não passava meu número de celular aos pacientes. Corta pra hoje e estamos aqui, atendendo praticamente todos nossos pacientes online (Skype, Whatsapp etc).

Antes dessa onda motivada pelo coronavírus o assunto já me interessava. Um tanto, claro, porque eu mesmo praticava: pacientes que mudaram de país e quiseram seguir com seus processos; um outro tanto, relacionado a minha própria experiência, porque eu estranho o processo.

Escrevo, então, para compartilhar esse estranhamento e um pouco do que penso sobre ele.

Qual o estranhamento? Muito genérica e estupidamente tem a ver com a percepção de que “não é a mesma coisa”. Para além do truísmo (não é a mesma coisa é um truísmo porque obviamente não é a mesma coisa), há pontos que creio relevantes aqui:

    1. não é a mesma coisa no sentido de que o timing das verbalizações muda em ambas as partes. O paciente tende, em minha experiência, a interpor pequenos silêncios, que me parecem “ganchos” para que o analista intervenha ou “momentos de escuta” para checar se a ligação (no sentido literal, de telefonia) segue conectada e operante. Além disso, minhas verbalizações também tendem a ter um timing diferente na medida em que eu pareço tender a ser mais racional e argumentativo, provavelmente porque não consigo recorrer a comunicações não verbais. Além disso,
    2. a vinculação online parece despir o encontro de sua “mística”, de sua inserção na ambientação peculiar ao encontro analítico. É comum, por exemplo, ver os pacientes aproximando e comparando o contato via chamada a outros contatos via chamada que eles têm com conhecidos e familiares – e isso parece acontecer porque a conexão, mediada pelo dispositivo e pela tecnologia, modula a transferência e torna-a composta por elementos endereçados à própria forma (online, no caso) de encontro.

Há uma idiossincrasia minha que creio conveniente interpor a essa discussão: “encontros” online frequentemente me perturbam. Há dois distratores principais que reconheço em mim mesmo: um deles é a tela, que me captura a atenção de um jeito meio perturbador (mesmo que o conteúdo não me interesse, como nesses bares que mantém odiáveis telões transmitindo jogos da 16a divisão do campeonato amazonense por todos os lados); outro é a frequente assincronia entre imagem e som, a que sou quase autisticamente sensível (sempre lembro de uma aula interessantíssima que perdi porque eu simplesmente não conseguia acompanhar o conteúdo, por conta da composição entre som e vídeo e ruído ambiente – apesar de profundamente interessado no tema, tive que levantar e ir embora, porque não conseguia prestar atenção).

Bom, essa é minha idiossincrasia. Mencionei porque entendo que as formas de nossas conexões afetivas e irrefletidas à tecnologia que proporciona o encontro é um dos fatores em jogo no atendimento, e entendo que seja útil e importante o analista em questão conseguir perceber esses elementos de sua disposição clínica (porque ela afeta na práxis, evidentemente).

Para além dela, acredito que haja idiossincrasias do ponto de vista de estilo clínico. Em minha experiência, por exemplo, vejo que a sessão online “obtura” modos de escuta e pensamento clínico a que intuitivamente recorro em meu trabalho presencial. O que quero dizer é que percebo que minha escuta fica um pouco mais “flat”, um pouco menos nuançada e sensível, quando trabalho online. Por conta disso entendo que meu trabalho online porta peculiaridades (deficiências, sinceramente) quando comparado a meu trabalho presencial. Nesse contexto eu tenho claro que cada estilo clínico se comportará de maneira diferente no horizonte dessa comparação (atendimento presencial versus atendimento online), e a questão não me parece o certo e o errado ou o bom e o ruim, mas sim quão consciente você consegue estar acerca dos impactos de suas decisões e, a partir daí, quais as melhores decisões que você pode tomar[1].

O ponto central para nossas considerações nesse campo devem passar, em meu entendimento, pela compreensão crítica acerca do impacto da materialidade dos determinantes do encontro da dupla analítica sobre a transferência e as condições de pensamento clínico. É a isso que se reportam, ao fim e ao cabo, os pontos 1 e 2 de minhas especulações preliminares acerca da forma como minha experiência online “é diferente” de minha experiência presencial.

O primeiro ponto (o impacto sobre a materialidade) dialoga diretamente com considerações discutidas já em 1912 por Wilhelm Stekel, em um texto chamado “As diferentes formas da transferência”, acerca da forma como a transferência transcende a figura do analista, investindo também outros elementos componentes da cena (da cena ou da ocasião que é, para o paciente, estar em análise). Stekel fala de como a transferência “abrange” os familiares, os profissionais que trabalham no consultório, a sala de espera e a própria sala de análise (em sua mobília, por exemplo – o paciente pode estabelecer uma dinâmica transferencial que inclui uma certa disposição afetiva em relação ao divã ou às almofadas que estão sobre o divã). Pois bem, essa relação transferencial a outros elementos que não só o analista permite pensar justamente sobre um tanto do que se passa no atendimento online: o sujeito tem uma certa disposição em relação ao dispositivo, à virtualidade, às redes sociais e aos encontros online, assim como ela certamente tem uma disposição afetiva em relação ao ambiente onde fica durante as consultas online (seu quarto, escritório, sala de estar) que vai entrar em relação com a transferência. Então, para todos os efeitos, podemos pressupor que a transferência muda nas consultas online: não necessariamente porque ela em si muda (é provável, mas não inevitável, que ela em si mude), mas a cartografia de sua expressão, as figuras através das quais se manifesta vão mudar, e bom, se isso muda, nossa forma de perceber e pensar e sentir e agir sobre/na transferência tem que mudar também.

O segundo ponto que nos toca, como mencionei, é aquele ligado à capacidade de pensamento clínico (em ato: a capacidade de o analista pensar no transcurso da sessão). Aqui entendo que as diferenças vão modular de acordo com o estilo clínico de cada analista em específico, como já mencionei; mas acho seguro dizer que haverá mudanças no modo de pensamento clínico, sempre e necessariamente. Conheço relatos de colegas analistas que acreditam poder manter um processo analítica continuamente em modo online sem prejuízo aparente na qualidade, profundidade ou efetividade do processo, e não tenho motivo para duvidar deles; de qualquer forma, em minha experiência, preciso reconhecer honestamente que meu processo muda bastante – o que não significa que seja necessariamente pior, mas minha avaliação (de novo sendo dolorosamente honesto) é de que é, sim, pior.

Em resumo, entendo que a condução de processos psicanalíticos online é possível, como deve ser possível embaixo d’água ou numa futura estação lunar, havendo interesse e humanos dispostos a tanto; a questão me parece, acima de tudo, a de compreender por onde passarão os efeitos dessa implementação peculiar e as melhores maneiras de articular o processo em vista delas.

Por fim, uma nota relacionada ao contexto específico que vivemos (a crise relacionada à pandemia de Covid-19): a implementação de sessões online tem sido processada em um período de intensa convulsão social e em momento de incertezas e ansiedades; a composição desses processos (a transposição para o modo online e a circunstância de agitação psíquica e convulsão social) implica em que o analista precise conciliar um tanto de apoio psicoterapêutico a seu trabalho. Entendo, portanto, que haja um trabalho necessário na mediação da transferência e do processo analítico em curso com o acolhimento de uma urgência que “arromba as portas dos consultórios”.

[1] Ainda nesse contexto, e a título de esclarecimento, não acho que a adesão a tal ou qual autor canônico de referência ofereça qualquer tipo de anteparo crítico para entender se seu estilo clínico é mais ou menos afetado pela transposição dos atendimentos da modalidade presencial para a online. Ou seja: não acho que “lacanianos” sejam mais ou menos afetados que “winnicottianos”, porque acho que o impacto não passa por aí

Um comentário em “Sessões online em tratamento psicanalítico – algumas considerações básicas

  1. Eu concordo muito com a forma que você aborda essa questão e acho que de certa forma ela tem sido um tanto neglicenciada pela comunidade, no meu caso, por até certo pudor.

    Não tenho tantos anos de clínica, os meus ainda são mais escassos, mas tenho tido experiências analíticas virtuais (por coincidência, minha primeira como analisando, foi ontem, por conta da covid-19 é porque sempre sustentei essa posição de algo estranho na relação analítica quando intermediada pela internet, mesmo já atendendo, resisti enquanto paciente).

    Concordo com a perda que o ambiente virtual propicia, ainda não sei se ele traz ganhos que o presencial não possui. Mas imagino que vamos descobrir conforme o tempo passe.

    Já atendi pacientes que começaram presencialmente, e as sessões on-line eram apenas exceções. Uma viagem pontual ou algo assim.

    Depois tive um paciente que migrou e continuou por bastante tempo o processo on-line, tendo até um maior período on-line do que presencialmente.

    Por fim, atualmente tenho sido indicado para muitos pacientes que estão fora do país. Dada a dificuldade de encontrar profissionais que falem português ou até por questão de custo.
    Por conta disso, hoje tenho processos que começaram e se mantém completamente nesse ambiente.

    Sinto diferença em todas essas modalidades.

    Atualmente sustento a ideia de que apenas abro exceções para atendimento online (continuo tratando como exceção) pessoas que não podem ir presencialmente.

    Entendo que o atendimento on-line é, também honestamente, menos rico que um processo presencial. Tende a ser mais interventivo, mesmo com toda a intenção de não intervir, mas é como se a questão nunca aprofundasse afetivamente, como aconteceria “no divã”.

    Tem algo de mais psicoterapêutico do que de psicanalítico. Mas tem resultados importantes, e não acho de modo algum uma prática sem valor. Tanto que a sustento.

    Penso que as demandas tem cada vez mais sido em torno de resultados práticos e pontuais. Sobre esse ponto, a escuta psicanalítica não perde muito pelo outro tipo de conexão. Acredito que isso tenha resultados importantes na implicação do sujeito e na forma com que ele passa a se ver com suas questões, mas há algo que falta no manejo, há algo que cria mais armadilhas e aumenta a complexidade da atuação do analista para obter a mesma finalidade que se procura num atendimento presencial.

    Minhas questões atuais são: será que são só resistências minhas, ou são realmente algo desse novo canal?

    Será que a transferência que se estabelece virtualmente, “aguenta” atos do analista da mesma forma? (Aqui acho até que sim, por se tratar mais de uma relação imaginária…)

    Os conflitos transferências aperecem muito menos, por que? Quem dos dois não consegue sustentar? Isso tem algo a ver com o canal?

    E sobre a neglicencia do tema, estamos tão identificados a figura do analista que não atende on-line?

    Acredito que todas essas perguntas e muitas outras possíveis, demonstram como é uma questão importante de aparecer mais no debate.

    Obrigado pelo texto, Will
    Abraço!
    LR

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