Tranquility Base Hotel & Casino, Arctic Monkeys, 2018

Pensei em escrever uma resenha do novo CD do Arctic Monkeys, “Tranquility Base Hotel & Casino”; aí desisti.

Pensei em escrever porque discordei das duas resenhas que li – uma do Tony Aiex para o “Tenho mais discos que amigos.com”, outra do Braulio Lorentz para o G1. As duas faziam referências à entrevista que o cantor, compositor e produtor do álbum Alex Turner deu, e a partir daí afirmavam que o CD era mais difícil e introspectivo, usava mais pianos e menos guitarras, se inspirava em Lô Borges e outros autores dos anos 70 e 80, era fortemente influenciado por ficção científica. Entendo as referências, e entendo que o fato de o lead da banda ter indicado esses caminhos fortalece o argumento dos caras, mas eu sinceramente não concordo.

Meus pontos de apoio para discordar são bem simples: 1. as guitarras continuam tendo um papel central e o CD não é tão distante assim do que a banda fez antes (nem acho que deixou de ser indie, como os dois resenhistas afirmam de formas distintas); 2. sinto muito mais presença de David Bowie e Amy Winehouse (já me explico) do que de pianistas old school e ambientação piano bar; e por fim 3. acho que uma entrevista do lead, por mais autêntica que pareça ser, não pode deixar de ser entendida como uma peça publicitária – principalmente pelo fato de eles terem prescindido de singles e etc., o tom de “estamos em um momento diferente” soa como propaganda.

(Agora, voltando ao ponto 2 e minha menção potencialmente polêmica a Bowie a Winehouse: acho que o CD quase inteiro cheira a Bowie. É um Bowie pasteurizado em alguma medida, menos experimental, mas o tom sci-fi, a amplitude dos vocais e a harmonia complexa lembram muito o estilo do saudoso Ziggy; sobre Winehouse, minha impressão é que o Monkeys tentou fazer com o experimentalismo sci-fi do Bowie o mesmo que Winehouse tentou fazer com a black music dos anos 50; sei que é uma referência inusitada, mas me parece permitir acessar o CD melhor do que essa ladainha em torno de Lô Borges e introspecção-“amadurecemos” que surgiu nas resenhas a que me referi).

Bom, li as resenhas, ouvi o disco e pensei que deveria fazer uma resenha. Mas aí abri mão da ideia porque percebi que eu não tenho formação para isso: quem sou eu para fazer resenha de um álbum, eu que nada entendo de teoria musical e da indústria da música, não sei de bastidores e trajetórias, não conheço as referências; como o selo que lançava as principais cantoras black dos anos 50 em que Winehouse se inspirou na produção de seus álbums, por exemplo: não lembro o nome da gravadora, nem de nenhuma das cantoras, como posso querer escrever uma resenha?

Pensei, inclusive, no que isso diria de mim. Afinal, eu posto relativamente pouca coisa na internet. Tenho esse blog, onde publico as coisas que escrevo, e eventualmente compartilho uma ou outra coisa que me parece utilidade pública, e eventualmente piadas e ódio-de-internet quando baixo a guarda e me permito ser um problema social-virtual. Aí eu posto uma resenha sobre um álbum do Arctic Monkeys? O que isso quer dizer?

Mas acabei dando mais uma volta nessa espiral hesitante quando reparei num trecho da letra de “Batphone”, décima faixa do álbum: “I launch my fragrance called integrity/ I sell the fact that I can’t be bought” (Eu lanço minha fragrância chamada “Integridade”/ Vendo o fato de que não posso ser comprado). Pincei ela assim mesmo, fora do contexto da letra – um pecado, inclusive, se considerarmos o gênio bizarro de Turner enquanto letrista (não tenho a menor vergonha de declarar minha inveja diante do talento dele); enfim, o ponto aqui é que me senti pego em flagrante: eu fico às voltas com minha suposta integridade, fico retraindo minha participação pública, retenho publicações pelas quais não posso assumir plena responsabilidade, e isso tudo sem perceber que essa integridade é uma imagem de mim que eu veiculo a alto custo.

Coisa recorrente na nossa vida de internet, por sinal. O sujeito percebe tudo que vai mal nas redes, percebe o quanto o Facebook e o Insta e o Twitter atrapalham sua vida, aí o cara se dói e decide sair do Facebook, fecha suas contas, se abre pro mundo real e etc etc etc. Mas isso pode muito bem ser – acho que normalmente é – um gesto performático, o cara todo grandiloquente tentando se erigir em herói a partir de sua estóica resistência aos pecaminosos prazeres de sair postando abobrinha a torto e a direito.

E a saíde para isso? Bom, acho que o caminho que entendo que os Arctic Monkeys propõem faz algum sentido: as letras fazem ampla referência a smartphones, redes sociais, Google e quetais – além das também usuais referências a estrelas e planetas e vida extra-planetária que, contrariamente ao que dizem os resenhistas desse álbum, não me parecem novidade na praça; não há nenhum tipo de engajamento grandiloquente, nem há muita política em jogo ali, mas há um gênio auto-crítico sem concessões que toda a produção (e particularmente as letras) transpiram, e que acho que tem um valor exemplar para pensarmos o engajamento e o posicionamento em nossos tempos. É claro: nada nem remotamente próximo de “This is America” do Childish Gambino, que é certamente um milhão de vezes mais engajada e politicamente mais aguda do que Monkeys (a comparação é até ridícula, por sinal, mas é algo que tive de ao menos mencionar); ainda assim, aqueles milhões dentre nós que não têm gênio, recursos, coragem ou propensão a um posicionamento tão contundente como o de Gambino têm que poder pensar a si próprios, e acho que a auto-crítica sarcástica e sem concessões que as letras transpiram e que a produção em geral veicula me parece ter seu valor. O que não tem valor positivo, pra mim, é comprar barato a ladainha publicitária que se promoveu, segundo a qual a banda teria “mudado radicalmente”, amadurecido, envelhecido, abandonado o indie em direção a coisas mais adultas etc etc., isso tudo me parece nada produtivo tanto para quem quer ouvir o álbum quanto para quem quer pensar sobre ele.

Por fim, em vista do exposto, acho que convém encerrar essa resenha como Foucault encerrou seu prefácio à 2a edição da História da Loucura:

– você acaba de escrever uma resenha!

– pelo menos é curta.

 

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