Aspectos históricos da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da luta antimanicomial

palestra proferida no I Simpósio Camiliano de Luta Antimanicomial, realizado dia 20 de maio de 2017

Preliminares:

Quero dizer que estou muito feliz em estar aqui e em poder participar desse evento. Quero agradecer ao Centro Acadêmico, à Liga de Saúde Mental e à Hemily Rocha pelo convite, e quero parabenizar a todos envolvidos pela iniciativa.

Fui convidado a falar sobre os aspectos históricos da Reforma e da Luta. É um desafio e tanto, e espero que o que tenho a dizer interesse a vocês. É bom notar, a esse respeito, que falo de um lugar peculiar – não sou exatamente um militante, e não sou um personagem histórico, nem da luta, nem da reforma. É muito comum que falas como essa, que fui convidado a fazer, sejam feitas por militantes ou por personagens históricos, e entendo que ocupo outro lugar que não esse, e que isso tem consequências. Pretendo otimizar as vantagens dessa peculiaridade e pretendo não tentar tamponar as desvantagens (fazendo discursos com um pendor militante que não tenho em mim ou tentando fingir que sei mais da história do que de fato sei). Conto, ainda, com o privilégio – fruto da competência da organização – de saber que no restante do dia vocês terão contato com gente amplamente qualificada pra falar de forma mais encarnada sobre como a luta foi lutada, na história, gente que faz a militância há muito tempo, que ajudou a escrever a história, que tem ela gravada em seus corpos e vozes.

Encerrando as “considerações preliminares”, queria dizer que vou me esforçar pra não ser aquele professor de história que faz todo mundo dormir, mas vou ao mesmo tempo me esforçar para oferecer a vocês informação e contexto que germine novos ângulos, maneiras de olhar e perspectivas de compreensão global sobre o movimento – tudo dentro das minhas limitações de conhecimento, estilo e trajetória, evidentemente.

Há duas definições de luta antimanicomial: a ampla e a restrita

Tem uma definição restrita e uma definição ampla de luta antimanicomial. A restrita diz respeito a um movimento organizado basicamente após a segunda guerra, na Europa e nos EUA, e a partir do final dos anos 70 no Brasil, e que tinha como meta opor-se ao encarceramento e ao constrangimento daqueles chamados de loucos ou de doentes mentais. O manicômio é o representante maior dessas práticas (constrangimento e encarceramento) e as propostas da luta antimanicomial, em todos países, sempre tomaram asilos, hospitais psiquiátricos e manicômios como um aspecto central de suas críticas, questionamentos e proposições. Nem sempre a ideia é fechar esses lugares – na França a ideia não era fechá-los, e aqui, na prática, também não (embora no discurso dos militantes da luta seja, e ainda hoje seja), há noções variadas do que seja ser “antimanicomial”: a luta antimanicomial é obviamente sempre contra os manicômios, mas isso inclui ideias como a desmontagem total sistemática, como em Trieste e como em Santos (na Casa de Saúde Anchieta), ideias como a desmontagem progressiva visando a abolição no longo prazo, como no projeto original de 2001 no Brasil, e inclui ideias como a da psicoterapia institucional francesa, que questiona a dinâmica asilar sem questionar a instituição asilo. Vou falar dessas coisas com mais calma já, já, por enquanto gravem isso: luta antimanicomial não é só fechar manicômios, mas é sempre coloca-los sob suspeita e em questão.

Há também uma história mais ampla da luta antimanicomial. Nessa história ampla, a luta antimanicomial é tão antiga quanto a história dos manicômios. No clássico de Foucault, “A história da loucura na Idade Clássica”, por exemplo, ele retrata a consolidação de grandes dispositivos de encarceramento que se consolidaram por toda a Europa já no século XVII, e vez por outra ele se refere a autores que se opunham a esses dispositivos, e que não achavam esse o melhor caminho pra lidar com a loucura enquanto questão social. Na Inglaterra, por exemplo, o hospício de Bedlam (também chamado de Bethlehem) é mencionado por Shakespeare em peças já no século XVI, e a referência a Bedlam é uma espécie de adjetivo para “louco” ou “doidão” – como no caso do adjetivo “pinel” aqui no Brasil, em referência às alas e asilos Pinel que surgiram por aqui no começo do século XX. O ponto é, de qualquer forma, que se entendermos por “luta antimanicomial” a oposição aos manicômios, em qualquer sentido, veremos que há luta antimanicomial desde que há manicômio, e num sentido amplo do termo há manicômio já há muito tempo.

Mas no geral…

O que se costuma dizer, no entanto, é que “luta antimanicomial” é um movimento específico do século XX, e da segunda metade do século XX. A expressão exata “luta antimanicomial”, por sinal, é específica do Brasil – em outros países empregaram-se outros termos, como antipsiquiatria, negação, Reforma etc. A expressão “luta antimanicomial”, por sinal, é intimamente associada ao Movimento da Luta Antimanicomial, que é um coletivo que se organizou no final dos anos 70 e que congregava, basicamente, trabalhadores de saúde mental insatisfeitos com o modelo que existia à época. Na leitura dialética, que é o modelo básico por trás da maior parte dos idealizadores e militantes da luta, a luta antimanicomial é a consolidação de uma antítese à tese manicomialista, e teria por objetivo chegar à síntese, que ainda não estava acessível nem para ser imaginada na época, e que é a tal sociedade sem manicômios. É bom notar, por sinal, que a expressão “Por uma sociedade sem manicômios”, um dos slogans do movimento, subentende que não conhecemos essa sociedade ainda, que ela é o ponto de chegada, do lado de lá da montanha de manicômios e práticas manicomiais que estamos tentando superar.

A sociedade sem manicômios teria entendido, enfim, que “de perto ninguém é normal”, que a doença mental é um construto impreciso e que sua implementação não ajuda, e que seria necessário encontrar outras maneiras de lidar com o que, nas palavras de Foucault, é a “miséria e a infelicidade humanas” que se manifesta desse jeito que chamamos de loucura e de doença mental. O lance, então, não é negar que pessoas sofrem, e que elas se machucam ou fazem mal umas às outras, mas é reconhecer que a maneira que temos de distinguir e categorizar sofrimentos psi e, acima de tudo, a maneira que temos de trata-los, não é justa e deve ser superada. (Em alguns lugares, como na Inglaterra, chegou a ser negado que a loucura fosse um problema para a pessoa taxada de louca, o sofrimento se devendo acima de tudo à estagnação e interrupção do processo por que passava o sujeito, aprisionando-o na loucura).

Então esse é o lance, e isso é o que caracteriza a luta. Ela se dá num momento específico na história – depois da Segunda Guerra, nos casos da Europa e dos EUA, e acompanhando o declínio das ditaduras, nos casos latinos. Antes desses períodos havia, é claro, confrontação, oposição e crítica aos internamentos, mas a maneira de isso se estabelecer nas sociedades era diferente, o estatuto da oposição era outro. Na França, por exemplo, todo o século XIX acompanhou uma relação próxima entre a consolidação dos asilos e o avanço de direitos dos cidadãos, como se os asilos representassem uma conquista civil – o que não faz muito sentido pra gente hoje, mas na época significava uma ruptura com o modelo das santas casas, dos encarceramentos domésticos e do aprisionamento em masmorras; o tratamento médico era símbolo do respeito aos direitos do indivíduo, dizia respeito ao “direito à saúde”. No Brasil aconteceu algo semelhante, mas nos termos peculiares à nossa história: a construção dos primeiros asilos, na segunda metade do século XIX e começo do XX, era vista como um caminho rumo à civilidade e a entrada na via do progresso – a gente queria ter, aqui, manicômios “como na França” ou “como na Europa”, porque isso ajudaria a termos nossa entrada no “primeiro mundo”.

A história da luta antimanicomial se inscreve na história social, obviamente, e por isso a gente precisa conseguir articular os processos – o que torna a coisa menos restrita e quadradinha, mas onde conseguimos localizar os pontos e questões de forma mais clara e orgânica e menos dogmática.

A série “Essa vida louca” – sinopse e temporadas

Sinopse e piloto

Para fins didáticos podemos entender que a história da relação entre a sociedade e seus loucos é como uma série do Netflix – vamos chamar essa série de “Essa vida louca” (em referência a “Essa vida Fela da puta”, biografia do Fela Kuti). Dá pra gente entender, então, que a luta antimanicomial no sentido restrito é uma “segunda temporada” nessa série, que começa com a temporada da “luta manicomial”. A luta manicomial rola no século XIX, e representa o avanço dos liberais e progressistas em direção a uma sociedade laica, técnica e racional; já haviam lugares que encarceravam loucos, nos séculos XVII e XVIII, mas eles ainda não era um manicômios porque não eram geridos pela “razão médica”, representante da “razão progressista”. Nos séculos XVII e XVIII, que são o “piloto” da nossa série, os loucos eram jogados em lugares fechados pra não atrapalhar o fluxo, e pronto-acabou: eram, basicamente, prisões, do jeito que são as nossas no Brasil hoje (sem julgamento, sem referência a justiça e sem proposta de que mude alguma coisa – não tem minha cara, meu jeito e meu sangue, meto ali e que se foda).

Primeira temporada

Isso quanto ao piloto, os encarceramentos pré-manicômio. Aí na primeira temporada, que rola no século XIX (e que vai até os anos 70 do século XX no caso Brasil), a humanização das práticas asilares e o tratamento médico digno passam a ser as bandeiras por trás da internação. O termo asilo nasce aí: sabe o asilo que os sírios não recebem na Europa, que os haitianos não recebem no Brasil? Pinel queria, no século XIX, que os loucos fossem “asilados” nos manicômios, recebessem um tratamento moral (sim, esse era o nome), e saíssem de lá “cidadãos”, tendo aderido à moral cívica que era a coqueluche da França pós-revolução. Pinel, o rei dos manicômios modernos, era filho da Revolução francesa. Isso deve ajudar vocês a entender alguma coisa, pensem nisso depois.

Bom, então ao longo do século XIX, que é nossa primeira temporada, esses tais asilos vão se disseminando; isso rola, por um lado, com a reorganização dos antigos manicômios-depósito, que são divididos em alas, recebem salas de “tratamento médico”, ficam mais limpinhos e cheirosos – uma das coisas que a “era Pinel” faz é a adoção do modelo taxonômico, ou seja, dividindo as loucuras como Lineu dividiu as plantas e os animais; então as classificações da loucura são, na prática, a reorganização dos antigos manicômios-depósito como um “zoológico” da loucura ou como um “jardim botânico” da loucura. A ideia disso é “racionalizar” o tratamento, fazer com que a razão domine e, se possível, extirpe a loucura dos alienados (fazer os alienados, tendo estado asilados, poderem por fim se tornar cidadãos). O Estado, laico, racional, liberal e progressista, erege os asilos como forma de acolher (é óbvio que o que eles fazem é prender, mas eles chamavam de “acolher”) seus alienados.

A primeira temporada da nossa série retrata, então, os sonhos coloridos da razão civilizadora, dos Estados-nação organizando seus territórios, sua população, domando seus loucos e moralizando seus cidadãos; é tempo de conquistas, de expansão colonial, tempo de revolução burguesa e industrial. E aí, num twist dramático, a primeira temporada termina como termina “O alienista”, do Machado de Assis. (Já leram? Se não leram, leiam. Paulo Amarante, que é um dos grandes nomes da Reforma e da Luta no Brasil, defende que “O alienista” é o primeiro texto da luta antimanicomial brasileira). No conto o alienista (psiquiatra), Simão Bacamarte, vai aperfeiçoando seu método diagnóstico, e com isso vai internando cada vez mais gente, até que toda a cidade está encarcerada, e ele por fim entende o que aconteceu: liberta todo mundo e se põe, ele mesmo, no asilo. Ou seja: a razão, de tanto aperfeiçoar seu modo de lidar com a desrazão, perde a razão. Perde a razão por vários ângulos: porque vai se tornando socialmente injusta, e diagnosticando mais os pobres, os pretos e os indesejáveis; porque vai se tornando violenta, proliferando tratamentos físicos, contenções e maus-tratos; e porque vai se mostrando cientificamente injustificável, suas falhas e limitações cada vez mais patentes.

Segunda temporada – Netflix “Primeiro mundo”:

Assim começa a segunda temporada: a razão se viu louca e perdeu a razão, e agora as questões estão em aberto. Conforme a população encarcerada em manicômios crescia ao longo de todo o século XIX e começo do século XX, as contradições internas à lógica asilar foram ficando mais patentes, e ao mesmo tempo as contradições da lógica social em que a lógica asilar se inseria (o modelo progressista, colonialista, estadista, racional e liberal) foram se acentuando. As duas guerras mundiais e as guerras de independência coloniais levaram, de alguma forma, a um mundo onde o modelo progressista e positivista não dava mais conta do recado. Concomitantemente, os horrores do front das duas guerras, os horrores dos campos de concentração na segunda e os discursos de denúncia ligados às guerras coloniais fizeram eclodir um pensamento humanitário, supra-nacional e libertário que questionava as violências institucionais e sistemáticas.

Esse pensamento se apoiou grandemente, e não surpreendentemente, na esquerda revolucionária; também se apoiou, em partes, no movimento libertário pacifista, hippie e de contracultura. Em todos os casos, era anti-Estado, pró-liberdade e questionador dos limites estabelecidos pela hegemonia entre razão e desrazão, entre justo e injusto – demandavam uma mudança nesse corte, e a derrubada desses muros. Na Europa e nos EUA isso tudo foi se acumulando desde os anos 50, muita coisa se organiza e muita Reforma rola ao longo dos anos 60 e o movimento chega a um ápice nos anos 70 – para saber mais sobre as histórias de Reforma em cada país recomendo o livro “Reforma Psiquiátrica”, do espanhol Manuel Desviat, que organiza isso tudo de maneira esquemática e oferece referências para quem se interessa em se aprofundar. Dos anos 80 em diante começa a terceira temporada na Europa e nos EUA: o modelo dos Estados de bem-estar social começa a ser questionado, o avanço na psicofarmácia muda as relações entre razão e desrazão, o DSM-3 propõe um modelo “a-teórico” e difuso de diagnóstico, enfim: um bocado de coisa acontece e a cena começa a mudar. Dos anos 80 em diante haveria uma terceira temporada rolando, na Europa e nos EUA, que podemos discutir num outro dia.

Segunda temporada – Netflix “Latinoamerica”:

Aqui no Brasil esses movimentos aconteceram de maneira diferente. Primeiro porque não se consolida um movimento de Reforma no Brasil na mesma época, ou seja, anos 50 e 60: até que houve um ambiente favorável a amplas reformas (na agricultura, na previdência, em vários âmbitos), mas ele foi “tesourado” na administração João Goulart, como vocês devem ter aprendido no Ensino Médio, e daí pulamos direto ao golpe de 64, que torna o ambiente ainda mais hostil aos questionamentos sistêmicos, revolucionários, radicais e pacifistas de forma geral. Então, enquanto acontecem as experimentações no modelo preventivista norte-americano, as costuras institucionais para a desmontagem do manicômio de Trieste na Itália, as experimentações marxistas e hippies na Inglaterra, enquanto isso rola por lá, o que temos por aqui é o velho modelo hospitalocêntrico privado-pago-com-dinheiro-público do Inamps, a velha lógica organicista, fisicalista e eugenista da psiquiatria como modelo hegemônico, uma psicanálise sectária, reacionária e envolvida com suas próprias crises em suas sociedades e os movimentos de questionamento e crítica sendo organizados na surdina e sob ampla repressão.

Não é por acaso, então, que a “primavera” da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial no Brasil vão aparecer de 1978 para 1979, ano em que começa a ser divulgado o projeto de “redemocratização” e em que os rigores do AI-5 vão sendo afrouxados. É ao sabor do “acordão” da nova democracia brasileira que a Luta ganha fôlego, e não por acaso o movimento de saúde mental é encampado (e encampa) a luta pelos amplos direitos civis e pela liberdade de expressão. A camisa de força, no Brasil, afinal diz respeito a todos, os grandes encarceramentos também, e mesmo o cerceamento de pensamento. “De perto ninguém é normal”, do Caetano, fala do desejo de que as pessoas se dêem o direito de pensar – e isso inclui tanto o cidadão médio que censura a si mesmo, por um lado, como o cidadão militante e o louco que são censurados, aprisionados, torturados e mortos por outrem, por outro. E isso significa, inclusive, que no Brasil a luta antimanicomial radicaliza seus projetos: o manicômio não é só aquele pico específico, aquele endereço onde tem aqueles muros e aqueles doidos, manicômio é tudo isso que está aí e que me impede de pensar, que me impede de ser eu mesmo, tudo que tolhe minha loucura criativa e meu direito de desejar, pensar livremente, de amar e ser amado.

Queria dar alguns detalhes a vocês a respeito de como o processo da “segunda temporada” rolou no Brasil, para oferecer pistas a quem se interessa pelo tema e para que se situem um pouco melhor nas minúcias do debate. Uma boa introdução sistemática a esse campo é o livro “Loucos pela vida”, coordenado pelo Paulo Amarante e por algumas outras pessoas, que conta isso tudo em detalhe

Como disse, a luta no Brasil começa por volta de 1979. Em 1979, não por acaso, Franco Basaglia vem ao Brasil participar de alguns eventos e, ao longo de sua estada, vai ao Hospício de Barbacena – grande estrela do livro “Holocausto brasileiro”, de Daniela Arbex, que vocês devem ter lido ou ouvido falar. Basaglia, líder da Reforma na Itália e grande ícone mundial da luta contra a violência psiquiátrica, diz já em 1979 que o que viu em Barbacena não era um local de tratamento, mas um campo de concentração (é a essa imagem que Arbex vai recorrer em seu livro). Podemos entender, então, a vinda de Basaglia e o ano de 1979 como “marco inaugural” da luta antimanicomial organizada no Brasil. Convém notar, evidentemente, que não há nascimento abrupto de fenômenos sociais – antes de 1979 havia interesse pelo tema, e não eram poucos os profissionais, familiares e usuários que acompanhavam de perto e com interesse as produções de Basaglia, mas também de Foucault, de Laing etc., e que se punham a pensar sobre as relações possíveis entre o que os jornais retratavam sobre Europa e EUA e o que nós, no Brasil, poderíamos fazer com nós mesmos. Mas, em termos históricos, a vinda de Basaglia e a ênfase de sua crítica são um marco.

A partir de 1979, então, as coisas começam a esquentar no Brasil. No mesmo ano de 1979, ano da vinda do Basaglia e tal, Hiran Firmino publica uma série de reportagens, também sobre o hospital de Barbacena, chamada “nos porões da loucura”, e faz com que a denúncia extrapole o debate profissional e ganhe as ruas. (De novo: não é por acaso que tudo isso começa a acontecer: Basaglia e Firmino certamente não teriam conseguido autorização para fazer suas visitas e relatos em anos anteriores – há um processo maior que deflagara esse processo específico).

A partir daí os trabalhadores de saúde mental passam a se organizar (nessa época estava deixando de ser proibido o direito de organização e manifestação civil). A partir daí se cria o MNTSM – Movimento Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental – que protagonizará a famosa “carta de Bauru” em 1987 (no segundo Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental, em Bauru, há uma série de debates e movimentos, que darão ensejo aos primeiros movimentos da Reforma Psiquiátrica no Brasil, e esse evento é finalizado com a publicação de uma carta que declara o 18 de maio como dia nacional da luta antimanicomial – o 18 de maio, portanto, faz 30 anos esse ano). Além disso organiza-se, nessa mesma época, o MNLA – Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Então em 1979 estouraram as primeiras bombas, tornadas possíveis pelo fim do AI-5 e os primeiros passos do “acordão”. Esses estouros fizeram germinar as organizações, as ideias e os trabalhos que a partir de 1985 – com o fim do governo tampão e a realização de eleições diretas – marcariam o ápice das lutas pela Reforma no Brasil.

De 1985 em diante há, previsivelmente, uma intensificação dos acontecimentos. Afinal, o movimento viera ganhando força desde 1979, e ao longo desse tempo as coisas foram se organizando e ganhando ímpeto. Em 1986 o CAPS Itapeva havia sido criado – fruto do inspirado trabalho do psiquiatra Jairo Goldberg, que foi a Trieste e a La Borde, na França, mas também de circunstâncias administrativas, políticas e a alianças que Jairo costurou para propor esse serviço, piloto declarado de um projeto mais amplo. Em 1989, com David Capistrano na Secretaria de Saúde, começa em Santos a intervenção na casa de saúde Anchieta (um manicômio), que levará ao fechamento da instituição e à criação dos cinco primeiros NAPS de Santos e do Brasil (confesso que não sei por que optaram por NAPS ao invés de CAPS). É também nessa época, em 1989, que Paulo Delgado, sociólogo, vereador e irmão do psiquiatra Pedro Delgado (que foi secretário nacional de saúde mental em parte da gestão Lula), Paulo propõe na Câmara a Lei da Reforma Psiquiátrica, que vai acumular emendas, vetos e mofo ao longo de doze anos de tramitação, para ser aprovada em 2001, a Lei Paulo Delgado, Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei 10.216/01. Isso é o que rola na segunda temporada: o clima esquenta, acompanhando a participação popular organizada ao redor do processo de redemocratização, organizam-se os movimentos e se instauram os primeiros serviços ditos “substitutivos” – o CAPS Itapeva seguindo um modelo mais “internalista” (posto que o CAPS oferecia serviços em seu espaço e buscava acolher as necessidades, demandas e projetos de seus usuários), ao passo que o NAPS seguia um modelo mais “territorialista” (posto que os 5 NAPS foram implantados visando abranger o território municipal e tinham como mote oferecer aos cidadãos da cidade um lugar que oferecia atenção psicossocial a que pudessem recorrer).

Cruza-se a isso as relações da Luta Antimanicomial e pela Reforma Psiquiátrica com a luta pela Reforma Sanitária e pelo SUS. As pautas serão solidárias ao longo dos anos 1979-1988, quando a pauta da Reforma Sanitária leva à aprovação da Lei Orgânica do SUS, que seria regulamentada em 1990, e a partir daí os caminhos se divergirão um tanto (para infelicidade de todos nós, em meu modesto entendimento). Mas é importante salientar que o SUS e a Lei Paulo Delgado foram concebidos em um mesmo ventre – tiveram destinos diferentes em função de estratégias diferentes e pactuações diferentes.

Cabe notar ainda que o caso São Paulo será marcado por peculiaridades: a gestão Erundina, 1989-1992, terá amplo apoio à criação de serviços de base territorial e ao estabelecimento de um programa vinculado ao SUS e em busca de organicidade e integralidade na prestação de serviços; é tudo menos radical que no caso da intervenção em Santos, mas há uma série de mudanças e um clima de transformação. Com a entrada de Maluf na prefeitura, no período 1993-1996, cria-se o PIS, que é na prática uma recusa por parte de São Paulo de seguir ligada ao SUS, e isso se segue, obviamente, de uma série de ataques a esse movimento reformista iniciado em 1989.

Em resumo, pode-se dizer que o período 1979-2001 assiste à organização de lutas, estabelecimento de projetos e avanço de programas e propostas que vão, aos poucos, ganhando terreno no cenário das práticas públicas em saúde e em saúde mental. A luta por um programa territorial, não excludente, financiado pelo governo e dirigido a todos os cidadãos, como um direito, vai aos poucos prevalecendo. A partir da aprovação da lei 10.216 em 2001, vira-se uma página na história da luta e da Reforma. Começa aí nossa terceira temporada.

Terceira temporada:

Serei muito mais breve em relação à terceira temporada. Ela começa em 2001, com a aprovação da lei 10216, também chamada de Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma Psiquiátrica. Ela organiza a luta em termos legislativos: prevê o fechamento de leitos, a criação de serviços de base territorial, foca em serviços psicossociais e territoriais em detrimento de serviços ambulatoriais técnicos. À lei de 2001 se seguirão uma série de outras leis, emendas e portarias, prevendo o financiamento na criação de residências terapêuticas, a garantia de condições financeiras para que o egresso de internação de longa duração consiga viver e outros tantos aspectos.

Nesse período – que vai, grosso modo, de 2001 a 2014 – houve um crescimento intenso no número de serviços de base territorial, enquanto os hospitais psiquiátricos eram aos poucos cerceados e encurralados, reduziam o número de leitos e eram eventualmente fechados. Os CAPS, por exemplo, pularam de 298, em 2001, para 2209 em 2014, segundo dados do Ministério da Saúde. O número de Serviços Residenciais Terapêuticos também aumentou, e a criação do antigo PSF, atual ESF, melhorou o acesso da população em termos de apoio psicossocial.

Nem tudo foram flores – longe disso. Tem havido, já há muito tempo, sucateamento do SUS em geral, e da saúde mental em particular, com contingenciamento de recursos, emendas reduzindo a previsão na composição das equipes, nas diretrizes de trabalho, na liberdade de pactuação municipal. As desvinculações de receita geraram perdas bilionárias em toda área da saúde, com prejuízo imenso ao campo da saúde mental – que, por ser amplamente dependente de serviços humanos, é um tipo de serviço particularmente caro e onde os contingenciamentos permitem pouca criatividade.

Esse “lado negro” de nossa terceira temporada esteve ganhando destaque e visibilidade conforme os episódios se desenrolam. Os últimos acontecimentos políticos, desde a eleição de 2014 e após o golpe, não ajudaram em nada.

Esse momento, nosso momento, é um momento crítico na terceira temporada. Não acho que seja uma temporada nova: é, ainda, a terceira temporada – a que começou em 2001. Nela assistimos a alguns anos de vitórias legislativas, ganhos institucionais e estratégicos, mas também assistimos a uma euforia que gerou certo descuido. O 18 de maio virou dia de festa, mais que dia de luta. Nada contra a festa: festa é bom, e a gente tem mais é que festejar mesmo; mas a luta perdeu coesão, perdeu força, perdeu destaque e perdeu prestígio, de 2001 pra cá. O SUS, anteparo necessário à saúde mental pública como a conhecemos e defendemos, foi sendo atacado, espoliado, desfigurado e ferido de morte, cada vez mais fortemente desde 2006 e de forma desabrida desde 2013. Nesses nossos dias soturnos os responsáveis (ministros e secretários) proferem aos quatro ventos seus desejos de que o SUS deixe de existir e seja substituído por um sistema privado-pago-com-dinheiro-público – a volta dos que não foram.

Então, peço que me desculpem o tom trágico: sei que acordaram cedo, sei que hoje é sábado e que seria bom termos um pouco de ânimo. Acontece que estamos em um momento episódio nessa nossa série, nessa vida louca: os tecnocratas estão no poder, fazendo seus acordos, resgatando os velhos depósitos, refazendo os velhos esquemas. É tempo de olhar, tempo de ver o tamanho da merda que nos cerca, tempo de unirmos forças e organizarmos uma luta. Uma luta antimanicomial. Não só pelos direitos dos usuários de CAPS e residências e demais serviços; não, longe disso: a luta é por nós, nós todos, cidadãos. A luta antimanicomial é contra os manicômios, e as medidas recentes, na saúde em geral como na saúde mental em específico, o manicômio está de volta a nos assombrar. E é por isso que insisto: precisamos fazer com que esses dias sejam dias de luta, antimanicomiais já que a luta é contra o manicômio que tem se erguido à nossa volta, para que a terceira temporada não termine ao sabor dessa reviravolta medonha que tem nos acompanhado de junho de 2013 pra cá.

E enfim, ao fim desse percurso, é aqui que a história nos traz – a partir daqui assumimos, todos nós, a história, para fazê-la nossa e, juntos, transformá-la.

 

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