o tempo e o vale

Dizem que há um pequeno vale, aninhado confortavelmente nos recônditos de alguma das grandes-cada-dia-menores florestas, um pequeno vale desconhecido aos mapa-múndis e aos coletores de impostos. Esse pequeno vale alheia-se às civilidades cercanas e basta-se em saber-se coração da mata, saber-se selva, clareira na selva como benesse da selva e em benefício dos seus. Nesse vale, segundo consta, vivem todos aqueles que, tendo um dia vivido em meio ao aço e ao vidro, sentiram-se no entanto sempre alheio; o povo do vale sabe que a presença de seus corpos em meio ao aço e ao vidro não era senão um engano passageiro, remediado quando de sua chegada ao vale e ao seio dos seus. Eles chegam, em geral, esquecidos do vale bem como desconhecidos ainda de si. Sua chegada é certamente pacata (eles não hão de sabê-lo, posto que não lembram), e são raros os momentos de agitação: quem chega ao vale chega, como se diz, ao ponto de costura da terra, espacial e temporalmente. Ainda que rigorosamente falando aconteçam coisas – habitantes que dormem e acordam, a percepção de uma flor que brota ou de uma chuva que principia e encerra – aos olhos do povo do vale nada acontece, e nada aconteceu. Aqueles que sabem da história especulam quanto à relação que haveria entre o povo do vale e os forasteiros (habitantes do mundo mapeado): há quem acredite que eles são os mortos, e o vale retrata um além como o seriam o Céu, o Inferno e o Umbral; há quem acredite que eles são os iluminados e os transcendentes; há quem acredite que o povo do vale são, na verdade, as almas dos homens do mundo mapeado, para além e independentes dos desígnios mundanos e carnais; e há, como eu, aqueles que acreditam que o povo do vale pode viver em nós, como pode não viver. Eu, na medida em que conto a história, sei não ser de lá, e posto que lá não há tempo, sei também que meu tempo lá não foi, e não é, e não será, pois para mim, e para que eu chegue ao vale, se há tempo, é porque não há.

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