Isolina, minha avó.
Muitas outras imagens, lembranças, muitas outras Isolinas há; a que conheço, se é que conheço, é minha avó.
Eu acho que a conheci de verdade no período em que ela, aos poucos, se desconhecia. O acaso ou coisa que o valha me levou para perto dela quando os ares mudavam, seu castelinho desmoronava, suas mãos já não cozinhavam e ela, para o bem dela ou coisa que o valha, foi fiar seus dias às mãos e costumes de outrem. Eu, como podia, visitava, e por lá fui descobrindo o amor que existia em mim e do qual pouca conta me dava. Minha avó, aquela ali. Pois é, dona Ermelinda, é minha avó; sim, sim, ela é mesmo muito especial. Gosta muito de mim? Olha só… bom, eu também gosto muito dela.
Por lá, no asilo onde ela foi se entregando aos poucos ao sabiá que vinha todo dia e que mais dia menos dia a levou de vez, por lá conheci histórias de seu passado, de sua mãe e de sua avó, que para mim parcamente existiam, e por lá acabei conhecendo essa Isolina que não se mostrava muito a mim enquanto vó.
Não que não tivéssemos convivido. Ela, por exemplo, creio que me conheceu quando eu mesmo estava apenas começando a me conhecer; tinha acabado de entrar na faculdade e desbravava a mim mesmo, à cidade, à Psicologia, à maioridade. Fui me procurando e me perdendo, me entediando e aos poucos entendendo enquanto ela, firme na governança do castelinho, me observava e me entendia, como eu mesmo não sabia que havia para entender. Pulso firme, prato farto, cozinha quente, o Estadão sempre à mão, não que eu gostasse do Estadão, mas admirar a afeição dela ao governo de si eu admirava e muito. Estranhava as regras de matrona, a chave ficava com ela e eu que chegasse quando quisesse – ela ia dormir às 21h que eu sabia, mas se eu chegasse às quatro da matina sem problema: ela levantaria, vestiria alguma coisa, desceria as escadas, abriria o portão e insistiria para que eu tomasse alguma coisa antes de dormir – coisa que por sinal ela pessoalmente prepararia e me assistiria engolir até o fim – sem nenhuma menção a bronca ou incômodo palpável. Ali, sob a asa de ferro de uma educação resoluta regada a firmeza aristocrática, eu fui descobrindo que eu era alguém, e podia ser alguém. Quem diria!
E antes disso, ainda. Antes de eu sequer saber que eu era algo para além da família ela já me conhecia, conhecia algo de mim que eu mesmo só vejo em momentos esparsos e muito fugazes, viu nobreza e alguma coisa que me inspira a querer ser sempre melhor, para um dia quem sabe ser algo próximo do que ela via. Isso quando eu ainda era criança, 7 ou 8 anos quem sabe, e em alguma festa junina de que não guardo lembrança vi nela alguma apatia ou vontade de dança e mesmo sem fazer ideia de como a tirei a dançar. Zezé di Camargo, acho que era, vê se pode!, mas era, nem sei se dançamos, decerto dançamos, mas quantas vezes ela não recorda esses pequenos gestos como as coisas que revelavam uma qualquer coisa de ultra-nobre que eu não sabia sequer que havia em mim; e o que sei, hoje certamente sei, é que ela soube ver em mim e me fazer ver em mim o que de bondade maior em mim havia, e de nobreza e justiça e alegria, e me instilou essas coisas que se eu não sabia talvez nem houvessem, e ela enfiou lá. Isso, se mais nada, isso sim é educar.
Mas antes, antes ainda. Aí eu mesmo não fazia ideia de que eu era alguma coisa, e quando nasci, no Santa Catarina ao que me dizem, fui pra lá e foi lá pelo que me dizem a primeira casa para que fui. E vendo hoje, se é que é verdade, faz todo sentido: ali onde o Wilson sênior, pai do meu pai Wilson, onde ele resolveu instalar seu castelinho e ser feliz, lá eu comecei a me descobrir Wilson e a me esquecer Wilson e a me descobrir algo de além de mim mesmo, algo de pureza e grandeza e nobreza, alguma aristocracia perdida que não sei bem se existia, mas que como ela via eu hoje vejo em mim.
E hoje ela faria anos, e faz anos, não a Isolina que eu não conheço, mas essas todas minhas avós Isolina que eu lembro e esqueço e amo e cultivo. Lá no asilo ela me chamou perto dela, apontou um senhorzinho numa cadeira de rodas e disse “conversa com ele, é muito culto, professor de música, e escreve no Estadão”. E era mesmo, eu acabei conhecendo mesmo o senhorzinho e era um professor de música e tinha escrito por muito anos no Estadão. Depois que descobriu meus hábitos ele programou uma quinta-feira em que me veria e postou-se lá, escondido atrás de algum livro, e ao lado dele toda uma coleção de livros sobre história da música que ele mesmo havia escrito. Passou-se, creio, como ele planejara: eu fui cumprimentá-lo, por acaso reparei nos livros que por acaso lá estavam, e folheando atinei com a descoberta “ora, ora, mas foi o senhor quem escreveu esses livros!”. Erudito o senhor, muitos livros e contos escritos, muitos cursos proferidos, ” e ainda escreve?”, “não, estou sem os meus discos, estão como perdidos, estou cá sozinho e não há quem vá buscar”.
Ninguém. Ninguém a buscar. E ele ficou lá, eu poderia mas não pude fazer-me de figura de confiança, e ele ficou lá sozinho com seu grande passado, talvez lá esteja até hoje – provável que não.
E minha avó é capaz de ter a coisa toda estudada, e eu e o senhorzinho estarmos cruzados como mais uma sua bela lição: chegue quando quiser, que eu abro o portão.
E minha avó, falecida, está longe de esquecida, está longe do passado, pois a tenho a meu lado: a cada passo que dou, sempre que olho e vejo algo de certo, de justo, de nobre, algo por que lutar, resoluções de vida, posicionamentos corajosos, sempre que luto pelo que acredito. Sempre que não estou sozinho.
Eu entendi, vó. Temos muito pela frente. Somos muito fortes, e muito potentes. Somos uma potência. Eu entendi, vó, e hoje eu vejo.
Obrigado, vó.
Sempre que posso, te leio. Sempre que posso e sinto em mim a disponibilidade e abertura que seus textos merecem, experimento ser marcada pelos seus sensíveis escritos. Sempre um mergulho, cheio de afetos. Hoje, especialmente, sigo com olhos mareados. Minha vovó, Ignez e não Isolina, também segue presente em mim. E meu jeito de elaborar o novo lugar que temos uma na vida da outra também foi escrever. Hoje, a marca foi por pura empatia. Sigo ao seu lado, Will, grata pela sua sensibilidade e pelos teus escritos. Exposição linda e rara hoje em dia.