Eu era moleque ainda. Chegado em casa o que eu mais queria era de novo ganhar as ruas, passárgadas ruas de um condomínio fechado em uma cidade fechada. Acima e abaixo com amigos, e tantos amigos, e tão vários, mais novos e mais velhos, mais experientes e sacanas, mais novos e bobões, e eu com eles, com eles todos. E eu sentava com alguns muitos e entrava as madrugadas adentro, sorvendo as confidências e os pensamentos mais desavisados. Um dos dias, um dos amigos – um dos queridos, dos mais queridos – me diz assim sem mais: “você vai fazer Psicologia quando for pra faculdade, a gente gosta de conversar com você”.
Num outro tempo e com menos seletas companhias eu queimava minhas adolescências contra o que via como pobrezas de espírito do coordenador do projeto de que fazia parte. Metido a sabedorias e coisas-complicadas-que-com-hífens-se-prestam-a-grandes-bostas, ocupava-nos o tempo com vazios que nos privavam da valiosa discussão, perdidos que estávamos em mãos mais espertas que as nossas cabeças de uspianos. E eu me recusava a vê-lo defender-se dizendo que não era bem assim, não era bem aquilo: “eu vivo de palavras, e eu levo palavras a sério”.
Mais perto de hoje vi o meu mestrado escapar-me das mãos aos poucos, ganhar vulto e vida próprios e eu a assisti-lo, indefeso. E foi se encaminhando pra onde, decerto, pertence: o confuso reino da palavra e do que ela franqueia no pelado mundo, se é que há mundo pelado sem a palavra a guiá-lo qual cabresto invisível.
E num desses dias em que duas ou três frases bonitas nos ocorrem assim quase-de-graça, dando-nos a metidice de sentir-nos foderosos, estava eu a ver a sinuosa senda das palavras a guiar minhas escolhas: o artigo besta que escrevi, a faculdade que escolhi, o trabalho que me ocupa – eu e as palavras, eu em busca de palavras que sejam minhas.
Donde tirei a inusitada admiração por Rubem Alves: pouco o li, pouca atenção prestei, e apesar disso o admirava: pela longa lista de epítetos que carregava, Rubem Alves é psicólogo psicanalista pedagogo filósofo jornalista escritor taxista, e eu via que Rubem Alves sentava e escrevia um livro sobre flores, dormia, acordava e escrevia um livro sobre a medicina, ia almoçar e escrevia sobre o tempo, e pensava eu com meus botões: “eu queria ser o Rubem Alves para poder viver de pensar o que eu penso”.
E admirado eu olho os fios se tecendo, os tijolinhos saindo debaixo de meus pés só para, passados acima de mim, virem estender-se como se fossem novos à minha frente.
E eu descobrindo a roda.
E eu dominando o fogo.
Unbeknownst, inventou um gringo inspirado: desconhecidamente.
Eu sendo escrito por aquilo que de mim eu desconheço.
Desconhecidamente eu me escrevo minha história.
Desconhecidamente eu sigo meu caminho.
Eu e minhas desconhecidas palavras.
AMEI!!!!!! Que delícia curtir suas reflexões! Que bom que os amigos te ouviam!Que ótimo que você pensa e escreve assim podemos aproveitar das sua reflexões!
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