Descobri que sou racista no fim de 2014.
Era período de entrega de avaliações na faculdade em que dava aulas, e eu estava entregando as avaliações e fazendo devolutiva com uma turma de supervisionandos. Acontece que as avaliações eram feitas em termos de “conceitos” (“suficiente”, “ótimo”, “insuficiente” etc), que eram depois transpostos para o sistema de notas de 0 a 10 que seria lançado no sistema de notas.
Pois bem: uma aluna percebeu que tinha recebido conceitos equivalentes ao de uma colega, só que no caso dela as conversões em nota tinham “caído” para o patamar inferior das notas contempladas pelos conceitos, ao passo que a colega dela tinha ficado com notas compatíveis com o patamar superior.
Até aí, tudo bem: a conversão seria mesmo discricionária do professor, em função de sua avaliação do desempenho singular do aluno avaliado.
Qual o problema? O problema era que a aluna tinha percebido algo realmente estranho: os desempenhos das duas não eram discrepantes a ponto de justificar a diferença de nota. Ou seja: o critério não tinha sido o desempenho das duas, do ponto de vista dos critérios que eu mesmo adotava para balizar a atribuição de nota.
E, bom, eu sabia bem qual tinha sido meu “critério” inconfesso (e que me passou desapercebido, até a aluna me chamar a atenção para o fato): eu simpatizava mais com uma aluna do que com a outra. Sei bem, também, por onde isso passava: eu me identificava mais com a aluna para a qual dei notas melhores – ela tinha gostos musicais, estilo de humor e estilo de prosa bem parecido com os meus; me lembrava quem eu mesmo tinha sido quando era adolescente.
Já a outra aluna, a quem dei notas mais baixas, não era alguém com quem me identificava. Tinha a coisa dos gostos musicais e do senso de humor, com certeza; tinha, também, o fato de ela vir de uma realidade sócio-econômica distinta daquela em que eu mesmo tinha crescido – uma trabalhadora, filha de trabalhadores, moradora da periferia, egressa de uma jornada de escolarização pouco qualificada e pouco acolhedora. Não tinha grande gosto por leitura, por referências culturais, etc.
E ela era negra.
Eu ainda demorei para me apropriar da importância daquele acontecimento, mas sinto que ele foi um marco para que eu me interessasse mais e mais, e me envolvesse mais e mais com questões sociais, e particularmente com a branquitude e seus modos de implementação do racismo brasileiro.
Foi uma jornada longa, e segue em seus momentos iniciais, até onde posso perceber – porque percebo que estou profundamente metido num funcionamento social profundamente discriminador e violento, e sinto que reproduzo uma enxurrada de violências sem que me dê conta disso.
Aprendi com Robin DiAngelo: todo mundo é racista. Acontece que tem gente que tenta olhar pra isso, tenta aprender a fazer diferente, tenta se responsabilizar. Eu, como muitos que andam ao meu lado, tive esse estranho privilégio de me aproximar dessas questões por “interesse”, como se fosse representativo de minhas boas virtudes e propensões humanitárias. O que significa que eu corri o risco de tocar a vida agindo de forma racista, sexista e classista com uma multidão de gente que passaria pelo meu caminho. E eu estaria protegido pela vagueza e pelos vieses do modo como nossa sociedade funciona (se aquela aluna tivesse precisado me denunciar e lutar por uma mudança nas notas, eu aposto cinco reais que ela não teria conseguido nada, e provavelmente teria ficado “marcada” na faculdade como “barraqueira” ou “problemática”).
Então, por uma soma de circunstâncias, eu acabei “me interessando” pelo assunto, e fui percebendo quão violenta nossa sociedade é, e quão fortemente ela me protege e privilegia, e o quanto isso acaba significando dor, sofrimento e exclusão pra um monte de outras pessoas.
Isso, sobre o racismo. Aí tem o lance da branquitude, né? Toda uma outra encrenca – porque, curiosamente, eu percebi que agia e pensava de forma racista, mas não percebi ainda que era “branco”, com tudo que isso implica. Esse processo levou mais tempo, foi mais longo e tortuoso, e segue em curso, com muita coisa por rolar, ainda.
Sobre isso, volto num outro post, em breve. p.s.: recentemente ingressei em uma pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Psicologia da USP. No contexto dessa pesquisa, passei a imaginar que pode ser bom retomar o recurso sistemático a esse blog, como eu fazia nos idos de 2010 a 2014 – quando, entre outras coisas, ele era um “laboratório de escritas” (“Errâncias: um laboratório de escritas” foi o primeiro “nome completo” que ele teve, antes de se tornar o “Errâncias: literatura, política e psicanálise” que é o nome dele até hoje). O blog nasceu, justamente, no contexto da minha pesquisa de mestrado: meu orientador rapidamente percebeu que eu “entuchava” ideias demais em um mesmo texto, e sinalizou que poderia ser bom eu ter outro espaço onde pudesse desaguar minhas reflexões e ponderações, para além do mestrado. Achei a ideia boa, e criei esse blog aqui. Passados 14 anos, volto a ele, de volta à sua roupitcha de laboratório de escritas, como um dos canais de comunicação vinculados à pesquisa. Por sinal, seria bom compartilhar a pesquisa também por aqui, não é? Então pronto, tenho dois textos no horizonte pra trazer pra cá: uma apresentação do projeto de pesquisa, e uma narrativa de meu encontro com minha própria branquitude.

Corajoso!!! Entrar em contato com as nossas “coisas” e encara-las nos faz no mínimo seres que podem mudar o mundo.