Um copo inteiro vazio

Eu perdi um amigo. Perdi um amigo, e não faz sentido nenhum.

O contato já não era aquele, a proximidade da bateria e do videogame já eram só a intimidade de uma memória compartilhada, abrindo espaço em meio ao estranhamento de estarmo-nos tornando adultos. Coisa estranha, ter essa dificuldade de horário. Coisa estranha, a pressa. Coisa estranha, termos rotina, compromissos, uma vida rodando a cem por hora, ter que negociar os encontros. Estranho virar adulto e perceber-se normal, mortal.

Corrijo: mortal é o caralho. Um cara de trinta anos não é mortal, e por isso a notícia atropela como um caminhão e não deixa grande espaço para despedidas: quem não era ainda mortal morreu. Morreu algo em mim, morreu uma parte de mim, e fica um vazio insistindo “chora que nem gente normal”, “cadê tua mensagem bonita?”, “você não se diz escritor? Escreve aí alguma coisa, tira sentido disso tudo, faz alguma coisa”… mas nada: lição nenhuma, beleza nenhuma, sentido nenhum. Não consigo olhar pra lembrança do meu amigo e dizer “é, amigo, vejo sentido nisso que aconteceu…” porque não faz sentido, sentido nenhum.

Eu sempre tirava sarro do pessimismo dele: “Copo meio vazio” era seu codinome, sempre uma crítica, um pessimismo a postos. Meu querido, você era chato, e eu te dizia rindo, porque era engraçado e porque eu era também, continuo sendo, mas agora você levou a razão consigo e eu com meu pessimismo vitalista fiquei a ver navios de gente querida partindo quando eu menos espere. Meu copo meio vazio partiu, pessimista que era, partiu e deixou aqui estilhaços que eu não sei bem onde foram parar. Queria poder chorar o morto, poder falar com um Smurf vivo em mim e dizer adeus, poder olhar pros vivos e dizer do que pra mim essa morte cristalizou enquanto lição, queria mesmo, mas não vai dar: fiquei sozinho com o sem sentido disso, a morte como um deslize de sentido de uma vida puta e desinteressada.

Cheguei no velório ainda esvaziado do sofrimento que se me impunha, e procurei meus amigos como quem procura um jeito de tirar sentido de tudo. Aí abracei meu mais querido amigo sobrevivido e me veio o pranto rebelde, e com ele escorregou um fiapo de sentido: raiva. Abraçado ali com o Nego eu dizia baixinho “filho da puta, mano, ele morreu”… filho da puta, acredita? Eu todo metido a meter sentido nas coisas e quando a coisa fica pesada, quando urge, o que me sai? Um palavrãozinho. Um palavrãozinho. Ridículo, e só. Sem sentido, e só.

Perdi um grande amigo, estilhaçou-se-me o copo meio vazio. Sem brindes, portanto, e sem discursos: é hora de por o pijama, sentir-se vazio de grandezas, é hora de ser alguém sem graça de sentidos e recados, sem lenços para despedir-se, sem lembranças de cultivo público, sem chance de um último gesto – acaba quando acaba, e é o absurdo e o ridículo que é.

3 comentários em “Um copo inteiro vazio

  1. Eu sinto muito por vocês.
    Como é dito, não tem sentido aos nossos olhos. O que resta? Chorar, rezar, se dá conforto, e quem sabe um dia ter esse entendimento. Você já eternizou seu amor pelo Amigo nessas palavras. Bj no coração meu querido.

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