Compartilho aqui o texto que usei como base para minha participação na mesa “O papel dos psicofármacos na clínica contemporânea”, que fez parte das atividades da Semana da Psicologia da USP – 2015. O link para o vídeo da mesa está disponível no YouTube, é só clicar aqui. Aproveito para agradecer à Comissão do Evento, pelo convite, e a todos que compareceram, foi ótimo contar com vocês lá! Vamos ao assunto:
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O PAPEL DOS PSICOFÁRMACOS NA CLÍNICA CONTEMPORÂNEA
Confesso que o tema, amplo como é, às vezes me dá uma certa vertigem, e aí, para não cair no senso comum, criei uma espécie de corrimão, que é: o papel dos psicofármacos na clínica contemporânea é indivisível do papel dos psicofármacos na vida cotidiana contemporânea, por um lado, e das mudanças estruturais quanto à natureza da clínica e quanto a seu papel social. Tentei criar, por isso, expedientes para apresentar a vocês por quê penso assim, e para mostrar a vocês como penso que isso funciona.
Comecemo com um exemplo; tomemos como exemplo… um cara. O cara acorda no momento ideal do próprio sono, porque o iWatch (que nome horroroso!) dele vela pelos ciclos REM dele; aí ele vai ao banheiro (porque o Tamarine cuida da vida intestinal dele) e lê as matérias que o Flipboard escolheu para ele; recebe notícias de amigos que o Facebook considera os mais próximos dele, ou apresenta manchetes e piadas que sabe que ele costuma gostar; vai trabalhar pelo caminho que o Waze dita e, enquanto trabalha, caso tenha dor de cabeça, toma uma Coristina porque ele é da “geração que não para por uma gripe”, ou Doril pra que a dor dele suma. Depois do almoço (vamos dizer que hoje o almoço foi light e ele não precisou de Epocler nem de Estomazil) ele toma um Red Bull, pra manter o ritmo – quando chegar em casa há de tomar um Slow Cow, pra relaxar e conseguir dormir; talvez fume um ou dois maços de cigarro – se bem que hoje em dia pega mal -, pode ser que tome um whiskinho quando chega em casa. O Tinder e o Viagra ficam guardadinhos, hoje é dia de semana.
Esse cara não usa psicotropicos, perceberam? Porém… suponhamos que ele se perceba ansioso, bem ansioso; por que será? Coisa estranha… mas vejam, que podemos esperar dele?
- que ele reflita sobre a origem de sua ansiedade?
- Que ele considere por bem pegar leve no trabalho para estabelecer um ritmo de vida mais saudável?
- Que ele procure uma aula de yoga, meditação?
- Procure um médico que prescreva um aplicativo ou remédio que tampe esse buraco?
Lembrem: se ele não parou por uma gripe, vai parar por uma ansiedade? Ele é da geração Coristina D!
Enfim, como esse cidadão é um cara absolutamente prosaico nas calçadas da Avenida Paulista ou no carro ao lado no congestionamento nosso de cada dia, por isso penso que o papel dos psicofármacos é facilmente acessível a quem, como diz a poeta, ande pelo mundo prestando atenção.
Bom, sobre o papel dos psicofarmacos na clínica contemporânea… temos um problema para abordar o assunto: a tendência hoje é que os fármacos sejam representantes de uma lógica clínica específica, uma lógica pragmática, calcada nos algoritmos, nas evidências, no pragmatismo e na efetividade, e quando essa lógica opera ela determina decisivamente o funcionamento da clínica. Acho, nesse aspecto, que seria importante que o psicofármaco tivesse um papel não-todo: que ele não tampasse o horizonte de problematização, que mantivesse o exercício clínico fundado na interrogação e na absoluta novidade que é um encontro entre humanos – um cuidador e alguém que procura cuidado; é claro que, de partida, seria necessário que houvesse horizonte para problematização na clínica em geral, que a clínica não estivesse tão absolutamente determinada por lógicas administrativas empresariais (convênios, indústrias, empresas, corporações profissionais), técnicas (protocolos, algoritmos, catálogos) e estatais (sindicatos). É claro que sempre haverá determinantes na clínica e que ela sempre é social, política, geograficamente determinada; o importante é que isso opere, como nunca deixará de ser, como um conjunto de determinantes a agir sobre o raciocínio do clínico, porém não obstruindo seu papel de cuidador envolvido em um processo singular com a pessoa diante dele. Se pudermos aproveitar o vínculo sem discriminá-lo como placebo, parece-me que ficamos melhor. Pensando em alguém que procura um psiquiatra com queixa de ansiedade, seria bom que o clínico pensasse no papel do ansiolitico, não para reduzir a ansiedade, mas para ajudar aquela pessoa em sua vida e em seus processos. Mal comparando, dá pra dizer que algumas pessoas ficam gripadas e tomam remédios porque não podem parar de trabalhar (o moço do exemplo acima certamente acharia que está aqui) ou tem uma festa ou precisam cuidar das crianças, há quem tire uns dias para se recuperar, há quem tome remédio porque não aguenta conviver com os sintomas, com a dor, com o sofrimento (eu imaginaria que o moço do exemplo acima está aqui).
Se o cara do exemplo procurasse um psiquiatra, seria bom que o psiquiatra levasse em consideração a vida que o homem vive e a maneira como a ansiedade encaixa na vida dele. Nesse sentido, a questão não é o ansiolítico em si, mas sim o papel do psiquiatra, da relação e, no limite, a concepção de cuidado e de cura.
Vou reincidir nessa historia de mal comparar: imaginemos que há dois tipos de médicos: o despachante e o conversadeiro. Você procura o despachante e ele tem pressa, pressa é o que ele tem a oferecer. Em 5 minutos ele descobriu os sintomas que te levaram lá e preencheu a prescrição. É tudo simples e rápido e não tem o que entender, compra isso aqui e toma desse jeito, não precisa fechar a porta.
Aí você procura o conversadeiro e – bom, pra começar do começo, você fica horas na sala de espera (não que não fique na sala de espera do despachante!). Mas enfim, depois disso você entra, e ele quer saber o que você faz; quando foi ao medico pela última vez; porque você casou tão jovem; de onde é seu sotaque; pergunta várias coisas sobre o que te levou a procurá-lo – algumas óbvias, algumas estranhas. Aí ele puxa um papel de prescrição e… te conta uma história: a historia da ansiedade. “Sabe, tem vários tipos de ansiedade…”. Ele te conta do que costuma ser feito nesses casos como o seu, conta historias de pessoas com quadros semelhantes que ele atendeu no passado, sugere algumas coisas. Você pondera com ele e ele te prescreve algumas coisas, de quebra te dá algumas dicas de farmácia ou laboratórios diagnósticos, passa o cartão de alguém, recomenda um restaurante perto de onde você mora, e até logo.
Os dois podem prescrever psicofármacos, e eles devem ajudá-los – e a seus pacientes – largamente. O ponto diferencial, no meu entendimento, é que o despachante trabalha “no sistema”, enquanto o conversadeiro parece um artesão, um mestre de ofício. O despachante usa o psicofármaco como um tampão, um procedimento padrão (num algortimo ou não), enquanto o conversadeiro prescreve um psicofármaco em função do papel que ele pode ter em sua vida, considerando sua esposa, o esporte que você pratica, sua rotina.
Eu não consigo conceber o ofício clínico como um ofício de sistema; para mim, clínica é uma arte. Entendo que o clínico se debruça sobre a situação, pensa e encontra um jeito de mostrar ao paciente como aquele quadro intervém na vida que ele vive, e procura modos de ajudá-lo a mobilizar formas de viver dali em diante.
O cara do exemplo, se ficasse muito ansioso, procuraria remédio. Aí eu pergunto: remédio pra que? Para a ansiedade, evidente, para que ela suma. Ele se daria super bem com um despachante: “tenho ansiedade, “toma esse ansiolítico”, “legal, passar bem”.
Agora imaginem o desconserto do cara se ele encontra um médico conversadeiro: “por que você trabalha tanto?”; “por que acha que sente essa ansiedade toda?”, “posso te dizer que não me espanta sua ansiedade?”… o cara olha o médico e não entende nada; o médico olha pra pessoa adiante dele e não vê ninguém. Bom, deixa eu perguntar de novo: remédio pra que?
Acredito que o problema quanto aos psicofarmacos deve-se acima de tudo ao fato de que os profissionais psi frequentementr atribuem ao remédio em si poder curativo, e pior: acham isso óbvio: óbvio que um remédio trata ansiedade, mas uma terapia assim “só falar”, trata ansiedade? Que estranho… o problema aí é a concepção de sofrimento, de cuidado, de cura, de vínculo. Entendo que isso não seja privilégio dos profissionais psi, mas ao contrário que seja reflexo de concepções largamente difundidas, em que o remédio é tratado como agente direto e imediato da administração de processos fisiológicos, como rolha ou tampa para os buracos da fragilidade fisiológica dos homens. E nessa lógica nós, as pessoas, somos mais ou menos como os “chefes de almoxarifado” ou gestores burocráticos nessa administração de buracos fisiológicos.
Queria encerrar com um pequeno trecho de “A comunidade que vem”, de Agamben:
“podemos ter esperança somente naquilo que é sem remédio. Que as coisas estejam assim e assim – isso ainda é no mundo. Mas que isso seja irreparável (irremediavel), que aquele assim seja sem remédio, que nós possamos contemplá-lo como tal – isso é a única passagem para fora do mundo. (A característica mais íntima da salvação: que sejamos salvos apenas no ponto em que não queremos mais se-lo. Por isso, nesse ponto, há salvação – mas não para nós)”.
Acho reducionista e triste a sustentação de um discurso que opõe a indústria farmacêutica como vilã da história e os clínicos e professores e a gente de bem no geral como os heróis em apuros: eu acho, sim, que a indústria farmacêutica tem um efeito nefasto na clínica, mas acho que isso ocorre antes de mais nada porque a formação dos profissionais psi não supera a mística em torno do papel terapêutico dos remédios, porque achamos que o trabalho de cuidado é remediar o sintoma.
Acho que damos espaço demais aos remédios porque achamos que oferecer cuidado é oferecer remédio, mas parece que frequentemente quem nos procura na clínica não sofre lá onde precisa de ajuda, e precisamos saber por que a pessoa casou tão cedo e de onde vem o sotaque dela e de onde ela acha que essa ansiedade vem, porque só aí poderemos ajudar – e isso porque aí poderemos oferecer abrigo ao que, pelo que entendo, é fundamentalmente humano, e não tem remédio, nem nunca terá.