Em Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, Marco Polo narra a Ghengis Khan as cidades fantásticas que encontrou ao longo de suas viagens; cidades sem fim se seguem no livro, breves relatos, como se fossem sonhos, cidades não-todas, cidades-proposta, cidades-fantasia. Em meio aos relatos, Khan e Polo se desafiam, pensando se as cidades invisíveis são fato, onde o são, qual seu papel e se eles mesmos, Khan e Polo, afinal de contas existem, em diálogos intemporais em jardins suntuosos.
Repetidas vezes Khan tenta agarrar com firmeza a concretude de seu império e a falsidade de Polo. Suas investidas, no entanto, sempre escorregam – afinal, a tal realidade concreta e os dados absolutos dificilmente são mais críveis e mais dizíveis que essas fantasias carregadas de credulidade que carregam ambos em sua existência aberrante, no desvario que é o palácio de um império continental.
Dado momento, Khan se dá conta de que deve haver, de alguma forma, um padrão nos diversos objetos de recordação e coleção que Polo apresenta, trazidos de cada cidade; vai forçando essa redução, essa padronização, sobre Polo, a exposição e os próprios objetos, até que passam a tratar das cidades invisíveis diante de um tabuleiro de xadrez: a cidade se mostra pelos movimentos, as peças, os espaços. (111-113)”o dia em que eu conhecer as regras finalmente possuirei o império, ainda que jamais consiga conhecer todas as cidades que ele contém”.
As regras e continuidades de um xadrez, ainda que impostas, têm sua eficácia e produzem, para Khan, cidades, que ele governa; mesmo Khan sabe, de alguma forma, que sua cidade não é a cidade, que algo sobra – ainda assim, parece-lhe que essaredução lhe permite uma vida mais vivível como responsável, como autoridade máxima do imenso império.
E então, “com o propósito de desmembrar as suas conquistas para reduzi-las à essência, Kublai Khan atingira o extremo da operação: a conquista definitiva, diante da qual os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios […]“. O preço a ser pago parece grande demais: encontrando as regras, as continuidades, a execução mais pura de seu domínio sobre a própria idéia das cidades, Khan parece tê-las perdido definitivamente, seu império jazendo sobre concreto e mármore secos.
De fato, assim parece proceder o conhecimento, quando arremessado avidamente sobre as coisas e seres: “decompor, reduzir, explicar, identificar, medir, pôr em equações, pode muito bem ser benéfico para a inteligência, posto que é claramente uma perda do ponto de vista da fruição. Frui-se não as leis da natureza, mas a natureza, não os nomes, mas as qualidades, não das relações mas dos seres. E, em geral, não se vive de saber” (CANGUILHEM, 2006).
O gesto do conhecimento mantém com o andamento das coisas uma frágil relação; levado ao ritmo do trator inexorável e das velocidades estonteantes da técnica imperial, o conhecimento parece passar-se a si mesmo e às coisas, estabelecendo com pessoas e coisas uma relação, quando muito, precária.
Não é uma questão de pressa nem de velocidades, no fundo; é uma questão de ritmos e modulações; Beckett poderia ser tomado como apressado quando diz “é preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até que elas me encontrem […]” (FOUCAULT, 2004). E no entanto, seu lugar propositivo é radicalmente distinto daquele proposto pelo “é preciso escrever, é preciso produzir porque o conhecimento é um produto, é preciso escrever artigos enquanto ainda posso, é preciso trabalhar porque é assim que as coisas são”.
Como diz Polo a respeito de Otávia: “essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, […]. Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso.
Otávia difere radicalmente de São Paulo: como todos sabem, São Paulo é uma cidade que cresce para cima, não para baixo. Assim, prédios e mais prédios surgem, cada vez maiores, mais utilitários, mais densos, mais compactos, mais caros. Em alguns lugares em SP erigem-se complexos em que o habitante pode morar, trabalhar, comer, divertir-se, ir à igreja… uma cidadela. Fazem-se projeções do dia em que São Paulo sucumbirá sob seu próprio peso, destorcendo-se em seu próprio umbigo como uma estrela que se torna um buraco negro no auge de seu brilho.
São Paulo repete, a meu ver, os fluxos e destinos de Leônia, cidade contínua 1 das viagens de Marco Polo (ps. 105-107): Se pergunta se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito silencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas.
Ninguém se pergunta para onde os lixeiros levam os seus carregamentos: para fora da cidade, sem dúvida; mas todos os anos a cidade se expande e os depósitos de lixo devem recuar para mais longe; a imponência dos tributos aumenta e os impostos elevam-se, estratificam-se, estendem-se por um perímetro mais amplo. […] É uma fortaleza de rebotalhos indestrutíveis que circunda Leônia, domina-a de todos os lados como uma cadeia de montanhas.
O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros. […] Basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos decorridos e flores secas afunda a cidade no passado que em vão tentava repelir, misturado com o das cidades limítrofes, finalmente eliminada – um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole sempre vestida de novo. Já nas cidades vizinhas, estão prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se no novo território, afastar os novos depósitos de lixo.
A mim, Otávia parece muito mais saudável e vivível que Leônia. Pois me parece muito feliz esta configuração urbana de Otávia, de constituir sua base sobre uma rede, que lhe serve de passagem e sustentáculo. Acredito que seja exatamente assim que se passe com todas as cidades, não só em Otávia: redes e laços e nós e fios e cordas que se entrelaçam sobre um abismo, o vazio absoluto. Me parece haver uma continuidade entre o ímpeto analítico, renovador, intolerante de nossa tecnicidade e os expedientes intolerantes de Leônia: estamos, hoje, sempre, interminável e ansiosamente, em busca do novo, do profundo, do científico, do radical, do último. Compreenderia essa máquina – pois isso não me parece humano, embora sejamos nós, humanos, conduzindo isso – como um roer ou um corroer contínuo, persistente dos laços, dos nós, das redes que configuram nossas vidas – no trabalho, em casa, na vida sexual, no uso de aparatos técnicos, na circulação social.
Cito mais uma vez Calvino (p. 28): “tudo isso para que Marco Polo pudesse expicar ou imaginar explicar ou ser imaginado explicando ou finalmente conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa se acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos”.
Esse livro do Calvino me marcou muito na época que o li. Encontrei um trecho que eu tinha gostado: “Também retorno de Zirma: minha memória contém dirigíveis que voam em todas as direções à altura das janelas, ruas de lojas em que se desenham tatuagens nas peles dos marinheiros, trens subterrâneos apinhados de mulheres obesas entregues ao mormaço. Meus companheiros de viagem, por sua vez, juram ter visto somente um dirigível flutuar entre os pináculos da cidade, somente um tatuador dispor agulhas e tintas e desenhos perfurados sobre a sua mesa, somente uma mulher canhão ventilar-se sobre a plataforma do vagão. A memória é reduntante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir”.