Carvalho

E foi assim: lá fomos nós.
A ideia, você sabe, é que eu te encontrasse do lado de lá do Paço da Esperança. Mas no meio do caminho (em meio ao Paço, digo), eu me perdi: entendi que eu já deveria estar lá, e eu não estava. E, uma vez que não estava, entendi que eu estava em algum lugar diferente de onde eu deveria estar. E, uma vez que pensei isso, percebi que eu não tinha mais como saber como faria para me encontrar comigo mesmo, ou, na verdade, com você.
É claro, encontrar com você era bem importante para mim, naquele momento. Mas o fato é que eu tinha medo, também. Acho que foi o medo que me fez sentir perdido, e fez com que eu me perdesse, ali em meio ao Paço.
Achei estranho, porque a princípio eu conhecia bem toda aquela região, então me parecia de fato esquisito que eu tivesse me perdido ali. Mas eu não reconhecia os espaços – ou melhor: reconhecia, mas eles não me diziam mais o que eu precisava que eles me dissessem (que é, obviamente, onde eu estava relativamente a onde eu deveria estar).
Tem um momento, por exemplo, em que a estradinha de cascalho faz uma curva meio abrupta diante de um carvalho gigantesco, não sei se você lembra. Sempre fiquei com a sensação de que o carvalho estava ali antes de o Paço passar a ser o Paço (antes da Esperança ter algum lugar no mundo, digamos assim). Construíram o Paço, mas tiveram que contornar o carvalho. Fico imaginando o carvalho ali, enquanto se construía aquela montoeira de coisas em torno dele; imagino o tempo mudando de natureza, conforme o espaço em meio ao qual o carvalho existe, o carvalhar do carvalho, passa a ser circundado por essa montoeira de coisas. Fico imaginando o carvalho tendo o seu carvalhar impingido por essa montoeira de coisas, tingindo cinzas e poeiras e pressas no entorno do carvalho, que vai passando a ser uma árvore.
E acho obsceno que o carvalho possa ser uma árvore. Porque, ainda que seja óbvio que ele seja uma árvore, isso não é propriamente o que ele é.
O fato de aquele carvalho seja uma árvore, aos olhos e nos pensamentos de quem caminha pelo cascalho, de alguma maneira é o fim do mundo. Literalmente: o fim do mundo.
E, como eu te dizia, eu me perdi. Eu sei que depois desse carvalho o caminho segue, e fazendo essa simples curva eu me manteria na estradinha, e poderia eventualmente sair do outro lado do Paço da Esperança, e te encontraria por ali, conforme combinamos, e aí tudo estaria bem.
Mas agora estou aqui, imerso na catástrofe que é o fato de o carvalhar do carvalho não ser mais visível ou vivível pra mim.
Será que o carvalhar do carvalho existe para os esquilos e os pássaros e os loucos e as crianças?
Acho que não.
Estarei opaco, por aqui. Queria que a gente se encontrasse do lado de lá do Paço da Esperança, como você bem sabe. Tudo, em mim, dependia disso. Eu vi a minha vida toda iluminada pela certeza de que eu te encontraria ali, do lado de lá do Paço da Esperança, e nosso encontro me ofereceria o ponto de apoio para que meu dia, e meus dias, me acolhessem e me fossem gentis, enquanto ideias e enquanto um lugar no mundo.
Mas não pude, e não acho que vou conseguir fazer chegar a você essa certeza que é o que corre em minhas veias agora.
Estarei aqui, ao lado do carvalho, destituídos do fulgor e brilho que nosso carvalhar poderia oferecer aos transeuntes de nós. Eu me apoio junto ao imenso tronco do carvalho, que me incomoda com suas cascas e com sua rispidez insípida; e eu me apoio junto ao esquecimento do impossível de estar em outro lugar que não seja imerso nas cinzas e poeiras e pressas com que dominamos o mundo.
Eu encontro infinita compaixão pelos transeuntes, aqui. Desprezo, preciso confessar – mas também uma infinita compaixão.
Eu juro que gostaria que esses pensamentos fossem uma mensagem numa garrafa, e que ela chegasse até você, e que dessa forma, desencontradamente, pudéssemos estar juntos desse lado daí do Paço da Esperança.
Não sendo, só posso tentar ser indulgente com minha própria pequeneza e fracasso, e lembrar que a sua jornada tem grandes chances de te oferecer coisas que te interessam; isso me acalma, e me reconecta com o carvalho que me acolhe e incomodamente pinica minhas costas.

Um comentário em “Carvalho

  1. Esse texto é muito bom. Mas o texto sobre o seu racismo foi extraordinário. Ao meu ver, podia ser um livro, quanto mais desenvolvido e falado. Não acredito que só uma publicação tenha leva a plenitude do que ele pode abordar e contribuir à sociedade. Poucos falam do seu racismo, como pessoas brancas em posição de prestígio, mas deveria ser mais incentivado a ser falado.

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